Regiões cerebrais ativadas quando a mente se dispersa podem permitir a compreensão de distúrbios neurológicos e mesmo da consciência. Analogia com a energia escura da cosmologia facilita o entendimento do processo.
Conceitos-chave
- Neurocientistas pensaram por muito tempo que os circuitos do cérebro são desligados quando a pessoa está em repouso.
- Experimentos com captação de imagens, no entanto, demonstraram que há um nível persistente de atividade de fundo.
- Esse modo padrão, como é chamado, pode ser crítico no planejamento de ações futuras.
- Ligações malfeitas de regiões do cérebro envolvidas no modo padrão podem levar a perturbações que vão da doença de Alzheimer à esquizofrenia.
Imagine que você esteja quase adormecendo numa espreguiçadeira, com uma revista no colo. De repente, uma mosca pousa em seu braço. Você apanha a revista e com ela esmaga o inseto. O que aconteceu em seu cérebro depois que a mosca assentou? E o que aconteceu pouco antes? Muitos neurocientistas supõem que boa parte da atividade neural no cérebro em situação de repouso se equipare ao estado controlado, sonolento, da pessoa. Conforme essa hipótese, a atividade no cérebro em repouso representa nada mais que ruído ocasional, semelhante ao padrão de "chuviscos" na tela de TV quando uma estação não está no ar. Então, quando a mosca pousa no seu antebraço, o cérebro se concentra na tarefa consciente de esmagá-Ia. No entanto, análise recente produzida por tecnologias de neuroirnagem revelou algo notável: uma grande quantidade de atividade significativa ocorre no cérebro quando a pessoa está sentada, sem fazer absolutamente nada.
Acontece que, enquanto sua mente está em descanso - quando você sonha acordado em uma cadeira, está adormecido na cama ou anestesiado para cirurgia -, áreas dispersas do cérebro "tagarelam" entre si. E a energia consurnida por essa troca de mensagens sempre ativa é cerca de 20 vezes a usada pelo cérebro quando responde conscientemente a uma mosca importuna ou a outro estímulo externo. Na verdade, fazemos a maioria das coisas conscientemente, tanto sentar para jantar como levantar-se para um discurso, e isso assinala um distanciamento da atividade básica do modo padrão default do cérebro.
Fator fundamental para a compreensão do funcionamento padrão do cérebro foi a descoberta de um sistema cerebral até então não reconhecido que recebeu o nome de "rede do modo padrão" desse órgão (DMN, sigla da expressão em inglês default mode network). O papel exato da DMN na organização da atividade neural ainda está em estudo, mas se acredita que orquestre a maneira pela qual o cérebro organiza memórias e vários sistemas que precisam de preparação para eventos futuros: o sistema motor do cérebro tem de estar acelerado e pronto quando você sente cócegas devido à presença de uma mosca em seu braço. Provavelmente, cabe à DMN um papel crítico na sincronização de todas as partes do cérebro - de modo que, como corredores numa competição de atletismo, elas estejam no modo adequado de "preparadas"
quando é disparado o tiro de partida. Se a DMN de fato prepara o cérebro para a atividade consciente, investigações de seu comportamento deverão levar a pistas sobre a natureza da experiência consciente. Além disso, neurocientistas têm razões para suspeitar que interrupções do funcionamento da DMN sejam a base de erros mentais simples e até uma gama de complexas perturbações cerebrais, da doença de Alzheimer à depressão.
• Pesquisas sobre a Energia Escura
A ideia de que o cérebro está constantemente ocupado não é nova. Um dos primeiros proponentes dessa hipótese foi o psiquiatra alemão Hans Berger, criador do eletroencefalograma, que grava a atividade elétrica no cérebro por meio de um conjunto de linhas ondulatórias sobre um gráfico (diagrama).
Em ensaios seminais sobre suas descobertas, publicados em 1929, Berger deduziu, a partir das incessantes oscilações elétricas detectadas pelo aparelho, que "temos de supor que o sistema nervoso central está sempre - e não só durante o estado de vigília - num estado de considerável atividade".
Mas as ideias dele a respeito de como o cérebro funciona foram amplamente ignoradas, mesmo depois que métodos de captação de imagem não invasivos se tornaram rotina em laboratórios de neurociência. Em primeiro lugar; em 1970, veio a tomografia por emissão de pósitrons (PET, de positron-emission tomography), que mede o metabolismo da glicose, fluxo sanguíneo e absorção de oxigênio como substituto para a extensão da atividade neuronal, seguida em 1992 pela captação de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI, de functional magnectic resonance imaging), que mede a oxigenação do cérebro com o mesmo propósito. Essas tecnologias são mais que capazes de analisar a atividade cerebral, focada ou não, mas a maioria dos estudos levou inadvertidamente à impressão de que, na maior parte, as áreas do cérebro permanecem tranquilas até que sejam requisitadas a desempenhar alguma tarefa específica.
Como é de esperar, neurocientistas que fazem experimentos com captação de imagens tentam esmiuçar com precisão as áreas do cérebro que permitem o aparecimento de determinada percepção ou conduta. As melhores concepções de estudo para definir essas regiões simplesmente comparam a atividade cerebral durante duas condições relacionadas. Se os pesquisadores quisessem ver que áreas do cérebro são importantes durante a leitura de palavras em voz alta (a condição de "teste"), em oposição a observar as mesmas palavras silenciosamente (a condição de "controle"), por exemplo, eles procurariam diferenças em imagens daquelas duas condições. E, para ver claramente essas diferenças, essencialmente subtrairiam o pixels nas imagens de leitura passiva daqueles encontrados na imagem vocal; e aceitariam a suposição de que a atividade dos neurônios nas áreas que permanecem "acesas" seriam as necessárias para ler em voz alta. Qualquer vestigio do que se chama de atividade intrínseca - a atividade constante que fica ao fundo (background activity) - seria deixado no chão da sala de montagem. Representar dados dessa maneira facilita a visualização de áreas do cérebro que são "acesas" durante determinado comportamento, como se elas se mantivessem inativas até que fossem requisitadas para determinada tarefa.
Ao longo de anos, no entanto, nosso grupo e outros manifestaram curiosidade sobre o que acontece quando alguém simplesmente descansa e deixa a mente divagar. Esse interesse surgiu de um conjunto de pistas provenientes de vários estudos que sugeriram a extensão dessa atividade "por trás da cena".
Uma pista veio com a mera inspeção visual das imagens. As fotos mostravam que áreas em muitas regiões do cérebro se mantinham bem ocupadas tanto nas condições de teste quanto nas de controle. Em parte por causa desse "ruído" de fundo compartilhado, diferenciar uma tarefa a partir do estado de controle por
meio do exame de imagens cruas separadas é difícil, se não impossível, e isso se consegue apenas com uma sofisticada análise computadorizada de imagens.
Análises posteriores indicaram que desempenhar determinada tarefa aumenta o consumo de energia do cérebro à razão de menos de 5% da atividade de base subjacente. Boa parte da atividade geral - de 60% a 80% de toda a energia usada pelo cérebro ocorre em circuitos não relacionados a nenhum evento externo. Com a devida licença dos colegas astrônomos, nosso grupo deu a essa atividade intrínseca o nome de energia escura do cérebro - referência à energia não visível, mas que representa a maior parte da massa do Universo.
A questão da existência dessa energia neural escura também surgiu quando observamos quanto é reduzida a informação dos sentidos que de fato alcança as áreas internas de processamento do cérebro. A informação visual, por exemplo, sofre perdas significativas ao passar do olho ao córtex visual.
De toda a informação virtualmente ilimitada disponível no mundo ao nosso redor, o equivalente a 10 bilhões de bits por segundo chega à retina, na parte de trás do olho. Como o nervo óptico ligado à retina tem apenas 1 milhão de conexões de saída, somente 6 milhões de bits por segundo saem da retina, e apenas 10 mil bits por segundo chegam ao córtex visual.
Após processamento ulterior, a informação visual é repassada a regiões do cérebro responsáveis por formar nossa percepção consciente. Surpreendentemente, a quantidade de informação que constitui essa percepção consciente é menos de 100 bits por segundo. Uma corrente tão tênue de dados provavelmente não produziria percepção se essa corrente fosse tudo o que o cérebro levasse em conta; a atividade intrínseca deve desempenhar um papel nisso.
• A Descoberta do Modo Padrão
Essas pistas da vida interior do cérebro foram bem estabelecidas. Mas era preciso alguma compreensão da fisiologia da atividade intrínseca do cérebro - e como ela poderia influenciar a percepção e o comportamento. Felizmente, uma observação intrincada, mas casual, feita durante estudos PET, e mais tarde corroborada com fMRI, nos abriu caminho para a descoberta da DMN. Em meados dos anos 90, notamos, por acidente, que, surpreendentemente, algumas regiões do cérebro tinham queda do nível de atividade a partir do estado de repouso, quando os pacientes desempenhavam alguma tarefa. Essas áreas - em particular, uma seção do córtex parietal medial (região perto do meio do cérebro, envolvida com a lembrança de eventos pessoais na nossa vida) - registraram essa queda enquanto outras áreas estavam empenhadas em executar uma tarefa definida, como ler em voz alta. Perplexos, demos à área que demonstrava o maior índice de depressão a sigla MMP A (medial mystery parietal area ou área parietal medialde mistério).
Uma série de experimentos com PET confirmou então que o cérebro não permanece desocupado quando não está empenhado numa atividade consciente. De fato, a MMPA, bem como a maioria das outras áreas, permanece constantemente ativa até que o cérebro se concentre em alguma tarefa nova, e nesse momento algumas áreas de atividade intrínse ca diminuem seu ritmo. No começo, nossos estudos foram recebidos com ceticismo. Em 1998 até um ensaio nosso sobre essas descobertas foi rejeitado, por que o relato da diminuição de atividade seria um erro em nossos dados. Ele sugeriu que, na verdade, os circuitos eram ativados na fase de repouso e desligados durante a realização da tarefa. Outros pesquisadores, no entanto, reproduziram nossos resultados tanto para o córtex parietal medial quanto para
o córtex pré-frontal medial (ambas as regiões relacionadas com "imaginar o que outras pessoas estão pensando", bem como com aspectos do nosso estado emocional). As duas áreas são agora considera das importantes nichos da DMN.
A descoberta da DMN nos permitiu uma nova maneira de considerar a atividade intrínseca do cérebro. Até o aparecimento dessas publicações, os neurofisiologistas nunca haviam pensado a respeito dessas regiões como um sistema - do mesmo modo que pensamos nos sistemas visual e motor -, como um conjunto de áreas específicas que se comunicam umas com as outras com o intuito de permitir que uma tarefa seja realizada. A ideia de que o cérebro pudesse exibir essa atividade interna ao longo de múltiplas regiões quando em repouso havia escapado ;rtex parietal medial quanto para
o córtex pré-frontal medial (ambas as regiões relacionadas com "imaginar o que outras pessoas estão pensando", bem como com aspectos do nosso estado emocional). As duas áreas são agora considera das importantes nichos da DMN.
A descoberta da DMN nos permitiu uma nova maneira de considerar a atividade intrínseca do cérebro. Até o aparecimento dessas publicações, os neurofisiologistas nunca haviam pensado a respeito dessas regiões como um sistema - do mesmo modo que pensamos nos sistemas visual e motor -, como um conjunto de áreas específicas que se comunicam umas com as outras com o intuito de permitir que uma tarefa seja realizada. A ideia de que o cérebro pudesse exibir essa atividade interna ao longo de múltiplas regiões quando em repouso havia escapado à visão tradicional de neuroimagem. Será que só a DMN apresentava essa propriedade, ou ela existia mais genericamente em toda a extensão do cérebro? Uma surpreendente descoberta na maneira como entende mos e analisamos a fMRl deu o espaço de que necessitávamos para responder essas perguntas.
O sinal de fMRI normalmente é mencionado como nível dependente de oxigênio do sangue (bold da expressão em inglês blood oxygen level-dependent). É considerado sinal porque o método de captura de imagem se baseia em mudanças no nível de oxigênio no cérebro humano induzidas por alterações no fluxo sanguíneo. O sinal bold, de qualquer área do cérebro, quando observado em estado de acentuado repouso, flutua lentamente, com ciclos que ocorrem de modo geral a cada 10 segundos. Flutuações lentas assim foram consideradas mero ruído, e dessa forma os dados detectados pelo scanner eram simplesmente eliminados, a fim de melhor resolver a atividade cerebral por meio da tarefa em particular, cuja imagem estava sendo capturada.
O acerto de descartar os sinais de baixa frequência foi questionado em 1995, quando Bharat Biswal e seus colegas da Medical College of Wisconsin observaram que, mesmo quando um paciente permanecia imóvel, o "ruído" na área do cérebro que controla os movimentos da mão direita flutuava. Isso ocorria em uníssono com atividade semelhante na área do lado oposto do cérebro associada aos movimentos da mão esquerda. No inicio desta década, Michael Greicius e seus colaboradores da Stanford University encontraram as mesmas flutuações sincronizadas na DMN num paciente em repouso.
Por causa do interesse cada vez maior no papel da DMN nas funções cerebrais, a descoberta do grupo de Greicius estimulou uma enxurrada de atividades em laboratórios no mundo todo, inclusive a nossa, em que todo ruído, a atividade intrínseca dos principais sistemas do cérebro, foi mapeado. Esses notáveis padrões de atividade apareceram mesmo sob anestesia geral e durante o sono leve - sugestão de que eram uma faceta fundamental do funcionamento do cérebro e não apenas ruído.
Ficou claro, a partir desse trabalho, que a DMN é responsável por apenas uma parte, ainda que crítica, da atividade intrínseca total - e a noção de que um modo padrão de função cerebral se estende a todos os sistemas do cérebro. Em nosso laboratório, a descoberta de um modo padrão generalizado veio a partir de um primeiro exame da atividade elétrica cerebral conhecida como potenciais corticais lentos (SCPs, na sigla em inglês), em que grupos de neurônios "disparam" aproximadamente a cada 10 segundos. Nossa pesquisa determinou que as flutuações espontâneas observadas nas imagens bold eram idênticas às dos SCPs: a mesma atividade, detectada por meio de diferentes métodos de pesquisa.
Passamos então a examinar o propósito dos SCPs, já que eles se relacionam a outros sinais elétricos neurais. Como Berger mostrou em primeiro lugar, e muitos outros confirmaram desde então, a sinalização cerebral consiste em um amplo espectro de frequências, que vão dos SCPs de baixa frequência até a atividade acima de 100 ciclos por segundo. Um dos grandes desafios da neurociência é entender como os sinais de diferentes frequências interagem.
Acontece que os SCPs têm um papel influente. Tanto nosso trabalho quanto o de outros pesquisadores demonstram que a atividade elétrica em frequências acima daquelas dos SCPs sincroniza-se com as oscilações, ou fases, dos SCPs. Como observado recentemente por Matias Palva e seus colegas da Universidade de Helsinque, a fase ascendente de um SCP produz um aumento na atividade dos sinais em outras frequências.
A orquestra sinfônica proporciona uma metáfora adequada, com sua integrada "tapeçaria" de sons provenientes de múltiplos instrumentos que tocam no mesmo ritmo. Os SCPs equivalem à batuta do regente. Só que, em vez de manter o tempo para um conjunto de instrumentos musicais, esses sinais coordenam o acesso que cada sistema cerebral exige para o vasto depósito de memórias e outras informações necessárias para sobreviver num mundo complexo e em permanente mudança. Os SCPs garantem que as computações corretas ocorram de maneira coordenada, exatamente no momento adequado.
Mas o cérebro é mais complexo que uma orquestra sinfônica. Cada sistema cerebral especializado um que controla a atividade visual, outro que ativa os músculos - apresenta seu próprio padrão de SCPs. O caos é evitado porque todos os sistemas não são criados como iguais. A sinalização elétrica de algumas áreas do cérebro tem precedência sobre outras. No topo dessa hierarquia situa-se a DMN, que atua como supremo condutor, a fim de garantir que a cacofonia de sinais em competição de um sistema não interfira com os sinais de outro. Essa estrutura organizacional não surpreende, porque o cérebro não é um vale-tudo entre sistemas independentes, mas uma federação de componentes interdependentes.
Ao mesmo tempo, essa intrincada atividade interna às vezes deve ceder às exigências do mundo exterior. A fim de fazer essa acomodação, SCPs na DMN diminuem quando há necessidade de vigilância, por causa da absorção de impulsos sensoriais novos ou inesperados - por exemplo, você de repente se dá conta de que prometeu ir buscar uma caixa de leite ao voltar de carro para casa. O sistema interno de mensagens SCP se reativa assim que diminui a necessidade de atenção focada. O cérebro oscila continuamente entre a necessidade de equilibrar respostas planejadas com demandas imediat