Ainda há muito o que descobrir sobre as capacidades intelectuais na infância, mas hoje já se sabe que as estruturas mentais não são estáticas - ao contrário, evoluem moduladas pela experiência e pelas conexões neurais.
Revista Scientific American - por Mônica Carolina Miranda
Não é de hoje que os cientistas buscam aprofundar o conceito de inteligência e compreender como se desenvolvem as habilidades intelectuais na infância. As primeiras pesquisas sobre o tema, realizadas no fim do século 19, seguiram caminhos diferentes. Entre elas estão os estudos de abordagem psicométrica e quantitativa como os feitos pelos psicólogos americanos Lewis Madison Terman (1877-1956) e David Wechsler (1896-1981), que enfatizavam as diversas dimensões das habilidades intelectuais; deles derivaram diferentes instrumentos para medir a inteligência, sob a forma de testes de aptidão (que estimam a capacidade de aprender) ou de desempenho (que avaliam o conhecimento adquirido) e de escalas de desenvolvimento cognitivo. Já com o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) e com o psicólogo bielo-russo Lev S. Vygotsky (1896-1934) passou a ganhar força o cognitivismo, ramo da psicologia que investiga processos mentais que desencadeiam comportamentos.
O mesmo ocorreu com a neuropsicologia, ciência voltada para a organização cerebral dos processos cognitivos, cujo representante mais proeminente é o russo Alexander Luria (1902-1977), que trouxe importantes contribuições aos testes cognitivos. Mais do que verificar escores, isoladamente, que fornecem pouca informação acerca do funcionamento mental do indivíduo, a neuropsicologia prioriza como ele soluciona um problema ou por que não consegue executar determinada tarefa.
Passados 100 anos desde as primeiras pesquisas, porém, ainda há muito que descobrir sobre as capacidades cognitivas do ser humano, em especial as da criança. No entanto, já se sabe que as habilidades intelectuais infantis não são estáticas; ao contrário, desenvolvem-se ao longo do tempo. A questão é compreender como elas evoluem e quais são suas bases estruturais.
Para Roberto Colom, psicólogo da Universidade Autônoma de Madri e um dos grandes estudiosos do tema na atualidade, a inteligência vai além da acumulação de conhecimento acadêmico. Ela é concebida como uma capacidade integradora da mente. Envolve raciocínio, planejamento, solução de problemas, pensamento abstrato, compreensão de ideias complexas e aprendizagem. Para muitos teóricos atuais, a estrutura da inteligência tem como ponto de referência o modelo dos três estratos, no
qual se distinguem aptidões ou habilidades concretas, amplas e específicas, como memória, pensamento e linguagem, as chamadas funções cognitivas.
• Memória e aprendizado
Bebês de 2 meses já retêm informações.
De acordo com psicólogos comportamentalistas, há duas formas básicas de aprendizagem: condicionamento clássico e condicionamento operante. No primeiro, o sujeito da experiência é passivo; no segundo, um ser que de maneira repetida e intencional age para produzir efeito sobre o meio. Uma das experiências com esse tipo de condicionamento foi feita pela psicóloga Carolyn Rovee-Collier (1996). Móbiles foram amarrados aos pés de bebês condicionados a mover as pernas para movimentá-los. Após um tempo e em situações muito semelhantes às do teste, eles moviam as pernas ao ver os móbiles, mesmo sem estar atados a eles. A intensidade do movimento era maior que antes do condicionamento devido à memória da experiência anterior.
• História e cultura
Nos últimos anos, o conhecimento sobre a função cerebral aumentou incrivelmente, e as teorias de Alexander Luria sobre a relação entre mente e cérebro ganharam destaque. O neuropsicólogo não só trouxe importantes contribuições ao entendimento do intrincado funcionamento da atividade mental humana, como desenvolveu um modelo de avaliação dinâmico das funções cognitivas que transcende o método mecanicista, psicométrico. Seu interesse voltou-se para o entendimento de como o complexo comportamento humano se desenvolve. E, dessa forma, suas teorias alicerçararn-se na história e na cultura do desenvolvimento, com ênfase na organização sistêmica dos processos psicológicos e na compreensão de sua estrutura interna.
Posteriormente, surgiu um ramo da neuropsicologia do desenvolvimento que procura compreender como evolui a cognição da criança com base na identificação dos diversos fatores que influenciam sua evolução e no modo como eles exercem essa influência. Além de identiflcá-los, a neuropsicologia da infância analisa intersecções dos fatores orgânicos, psicológicos e sociais, tendo como fundamentação a perspectiva biopsicossocial. Desse ponto de vista, para entender de que maneira a inteligência se desenvolve, é preciso verificar como se dá o processamento de informações nas diferentes etapas da vida da criança.
Vários estudos têm demonstrado que a capacidade de aprendizagem já se inicia no período fetal. A memória, uma das funções fundamentais para o aprendizado e o desenvolvimento em geral, está presente desde a fase pré-natal e se mantém de forma quantitativa e qualitativa, de acordo com a maturação cerebral. Segundo a psicóloga Flávia Heloísa dos Santos, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Assis, o recém-nascido é predisposto a registrar e recordar importantes sinais biológicos, como os faciais e a fala a.
Recém-nascidos expostos à mãe por apenas algumas horas olham mais profundamente para a face dela que para a de estranhos. A autora cita uma série de pesquisas com bebês por meio do paradigma de resposta do chute diante de um móbile em movimento, o que demonstra que os sistemas explícito e implícito da memória de longo prazo se desenvolvem no mesmo espaço de tempo e não sequencialmente. A memória explícita, de caráter consciente e intencional, armazena fatos, nomes e eventos; já a implícita relaciona se aos hábitos e habilidades adquiridos.
O tempo médio de retenção da informação, quando esta é repetida várias vezes (como no caso da movimentação do móbile), se expande com a idade: aos 2 meses, dura cerca de dois dias; aos 9, aumenta abrupta e progressivamente; e, com 1 ano e meio, alcança 13 semanas.
A memória de eventos também mostra um padrão específico. Podemos considerar que aos 3 meses o bebê já retém informações sobre lugares onde ocorreram determinados acontecimentos; aos 6, incorpora algumas informações de ordem temporal dos fatos. As experiências de vida no período neonatal, como as sensações (relacionadas à fome, por exemplo), ativam vias neurais específicas com a respectiva associação límbica, modulando o humor e a emoção (tônus afetivo). Padrões rudimentares de atividade neural fornecerão a base do desenvolvimento psicológico da criança. Tais padrões permitem entender de que forma os bebês acumulam experiências iniciais e como isso afetará seu comportamento mais tarde.
Outro processo cognitivo elementar é o de senvolvimento da atenção. Luria enfatizou que a atenção, principalmente a voluntária, não é de origem biológica, mas um ato social. A atenção da criança nos primeiros meses de vida é mais elementar, involuntária, já que ela é atraída pelos estímulos que lhe são biologicamente significativos. No final do primeiro ano de vida, quando a mãe, ou outro adulto próximo, no meia um objeto e o aponta, a atenção do bebê é atraída para ele - e isso se dá por meio da comunicação social, palavras ou gestos, estágio fundamental no desenvolvimento infantil, base do comportamento direcional, organizado.
• Linguagem da mente
O neuropsicólogo russo Alexander Luria foi fortemente influenciado pela teoria sociocultural de Vygotsky. Sua psicologia relaciona os processos psicológicos humanos com aspectos culturais, históricos e instrumentais, com destaque para a linguagem. Tomou contato com a teoria freudiana e interessou-se pelos processos mentais (afeto, pensamento e influências culturais). Também se voltou para os aspectos neurofisiológicos relativos à mente e à linguagem. Para ele, muito mais que a localização das funções superiores cerebrais importa a interação dinâmica entre elas. Sua maior contribuição foi a noção de que o cérebro funciona como um todo, em sistemas funcionais. Luria fez a descrição de três principais unidades funcionais básicas de que é composto o cérebro e necessárias para qualquer atividade mental: uma para regular o sono ou a vigília, outra para adquirir, processar e armazenar as informações que chegam do mundo exterior e outra para programar, regular e verificar a atividade mental.
Cada unidade tem estrutura própria, que consiste em três zonas corticais: as primárias (de projeção), que recebem ou mandam impulsos para a periferia; as secundárias (de projeção e associação), onde a informação recebida é processada; e as terciárias (zonas de superposição], responsáveis pela integração de várias áreas corticais. Um exemplo desse dinamismo mental: a percepção não é um processo passivo, mas ocorre por meio da ação combinada das três unidades. A primeira fornece o tônus cortical necessário, a segunda leva a cabo a análise e síntese de informações e a terceira provê os requeridos movimentos de busca controlados voluntariamente, os quais conferem à atividade perceptiva seu caráter ativo.
• Sincronismo refinado
O desenvolvimento cognitivo da criança não é, portanto, um processo contínuo e homogêneo. Depende da interação entre os múltiplos fatores de crescimento das áreas cerebrais, do grau de mielinização de suas estruturas, de sua evolução pré-natal, bem como das possibilidades que o cérebro ainda imaturo tem de reorganizar seus padrões de respostas e conexões mediante as experiências (ou mesmo após lesões cerebrais). Há um refinado sincronismo entre como o cérebro se desenvolve e o que modela seu crescimento e maturação.
É evidente que desde a primeira infância a estrutura cerebral e suas conexões neurais são esculpidas por numerosas influências ambientais. Como centro do pensamento, das emoções, dos planos de ação e da autorregulação da mente e do corpo, o cérebro passa por um longo processo de crescimento, que de fato dura a vida inteira. Esse desenvolvimento é mais intenso nos primeiros anos (bastante acelerado no decorrer da infância até a fase da adolescência e de adulto jovem), com diferentes etapas de crescimento cerebral e mudanças por toda a vida adulta. Isso significa que as experiências precoces teriam um impacto profundo sobre o potencial subsequente de cada pessoa.
Tanto Piaget como Luria explicam a formação e a elaboração das várias funções cognitivas por meio de um processo de ontogênese (desde a concepção até a fase adulta), que atravessa vários estágios. Nesse contexto, o desenvolvimento e a estrutura das atividades mentais não permanecem inalteráveis; a execução das tarefas dependerá de conexões constantes e em evolução, bem como da atividade conjunta das diversas unidades cerebrais. Assim, aos estágios do desenvolvimento intelectual descritos por Piaget pode-se atribuir uma correlação significativa com as fases do desenvolvimento cerebral.
No recém-nascido a atividade motora está organizada em sequências de ativação neuronal, geneticamente determinadas, que definem o padrão motor de acordo com as respostas reflexas filogenéticas. À medida que a criança se desenvolve, padrões mais organizados de atividade motora vão se sobrepond e ontogênese (desde a concepção até a fase adulta), que atravessa vários estágios. Nesse contexto, o desenvolvimento e a estrutura das atividades mentais não permanecem inalteráveis; a execução das tarefas dependerá de conexões constantes e em evolução, bem como da atividade conjunta das diversas unidades cerebrais. Assim, aos estágios do desenvolvimento intelectual descritos por Piaget pode-se atribuir uma correlação significativa com as fases do desenvolvimento cerebral.
No recém-nascido a atividade motora está organizada em sequências de ativação neuronal, geneticamente determinadas, que definem o padrão motor de acordo com as respostas reflexas filogenéticas. À medida que a criança se desenvolve, padrões mais organizados de atividade motora vão se sobrepondo. O padrão dos reflexos dá lugar à movimentação mais dirigida, principalmente das mãos, a partir do terceiro mês de vida. Nesse período há maior integração entre as áreas sensoriais e motoras, o que permite a coordenação dos movimentos mão-boca e mão-objeto. No sexto mês de vida passa a ocorrer um grande desenvolvimento das áreas motoras corticais, com ênfase nas áreas relacionadas à preensão manual e ao equilíbrio estático, e maior integração associativa entre os estímulos visuais, auditivos e somestésicos. A partir do segundo ano o desenvolvimento da fala começa a organizar as sequências motoras e, do terceiro ano em diante, a criança já pode imitar movimentos das mãos do observador (abrir e fechar), porém ainda não é capaz de realizá-Ios de maneira alternada ou simultânea. Ela consegue reproduzir canções, mas não ritmos complexos com as mãos. A percepção visual mostra melhor desempenho, e a criança reproduz um traço ou um circulo, sem, no entanto, identificar ângulos. Todos esses fatores, indicativos de cognição, revelam as origens da inteligência.
• Um, dois, três, conte outra vez
Segundo cientistas, os bebès têm senso numérico antes mesmo de falar e de se submeter à educação formal.
Pesquisas diferentes chegam a resultados semelhantes. Andréa Berger, Gabriel Tzur, ambos da Universidade Ben Gurion, de Israel, e Michaell. Posner, da Universidade de Oregon, Estados Unidos, observaram 24 crianças entre 6 e 9 meses enquanto elas assistiam a um "teatro de bonecos", com um ou dois personagens. O estudo foi publicado na Proceedings ofthe National Academy of Sciences (PNAS), em agosto de 2006. Durante o teste, de tempos em tempos a visão da cena era bloqueada, e o número de bonecos, alternado ou não. Resultado: os bebês fixavam mais tempo a atenção na cena quando o número de bonecos diferia do da anterior.
As crianças tiveram o cérebro monitorado por uma nova tecnologia desenvolvida na Universidade de Oregon, o Potencial Evocado Relacionado a Evento (ERP, na sigla em inglês), espécie de resposta eletroencefalográfica produzida por estímulo sensorial. Quando viam o mesmo número de personagens antes e depois, fixavam-se na cena por cerca de 6,94 segundos. Ao depararem com o inesperado, ou seja, com um número de bonecos diferente do da cena anterior, ficavam presas à cena por aproximadamente 8,04 segundos. Constatou-se, portanto, que o padrão de resposta cerebral é idêntico ao dos adultos diante de equações aritméticas.
Esse estudo confirma o realizado em 1992 por Karen Wynn, psicóloga da Universidade Yale, Estados Unidos, e publicado na revista Nature. Nele analisaram-se as expectativas de bebês de 4 a 5 meses em relação a operações primárias de adição e subtração, por meio de metodologia semelhante com bonecos. Durante o experimento, observou-se o nível de atenção ou desatenção das crianças sobre resultados esperados ou inesperados. Conclusão: elas fixavam o olhar mais tempo diante do improvável sob a forma de erro aritmético (1 boneco + 1 boneco = 1 boneco).
Outro procedimento parecido foi publicado em fevereiro de 2006 também na PNAS. Realizado por Kerry Jordan e Elizabeth Brannon, da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos, o estudo seguiu metodologia similar à de uma experiência anterior feita por elas para avaliar a percepção numérica dos macacos. O teste consistiu na observação de crianças de 7 meses colocadas diante de dois monitores, um ao lado do outro, com imagens femininas. Um exibia duas mulheres conversando; o outro, três. Enquanto isso, os bebês escutavam duas ou três vozes femininas alternadas, provenientes de caixas de som dispostas na sala. Eles fixavam mais a atenção no monitor quando o número de vozes e imagens era coincidente - para as pesquisadoras, uma amostra de que somos capazes de estabelecer muito cedo, e de forma natural, equivalências numéricas entre aquilo que vemos e ouvimos.
O mesmo afirma a matemática Simone Nunes Ferreira, especializada em psicopedagogia, e o psicólogo Marcos Montarroyos Calegaro, em artigo de 2004 sobre a psicogênese das habilidades numéricas. Segundo eles, desde a década de 80 os estudos realizados com bebês já demonstravam que até o recém-nascido possui "uma compreensão intuitiva dos números (senso numérico)", capacidade que pode ser vista também nos animais - um indício de que "as habilidades numéricas básicas podem ser naturais e universais para os seres humanos".
• O que acontece com o cérebro em cada idade
Desenvolvimento intelectual, segundo a teoria dos estágios de Piaget
1º mês |
Tronco Encefálico: comanda ações reflexivas e controla as funções respiratórias e circulatórias |
Esquemas e reflexos: automatismos inatos ou adquiridos, que são a base da organização cultural |
6º mês |
Córtex primário: ligado à percepção, transmite impulsos sensoriais e motores para os mecanismos neuromusculares |
< |