Na raiz da desagradável sensação de constrangimento está a necessidade de nos protegermos das infrações. muitas vezes involuntárias, às normas sociais; embora saibamos que ninguém está livre de sitiações embaraçosas, para alguns encará-las com tranquilidade parece ser um grande problema.
Revista Scientific American - por Christine R. Harris
Uma senhora elegante tropeça ao entrar em um restaurante. Em um instante, seu rosto fica visivelmente vermelho e um sorriso sem graça desenha-se em seus lábios. Sente-se invadida por uma profunda sensação de mal-estar, que parece durar uma eternidade. Porém, logo que alcança seu lugar à mesa, o rosto volta à cor habitual e tudo prossegue como se nada tivesse acontecido. Mesmo corriqueiros, esses breves eventos revelam um aspecto particular e enigmático da natureza humana - e pesquisas mostram que as emoções envolvidas podem ter consequências nada banais, já que o medo de sentir constrangimento, de fato, influencia muitas de nossas escolhas.
Ao estudarem a natureza das emoções, filósofos e psicólogos chegaram à conclusão de que o que as desencadeia raramente é um evento descritível em termos objetivos. Geralmente, um estado de ânimo é resultado do que alguns especialistas chamam de "avaliação cognitiva". Segundo essa hipótese, um estado mental (emoção) desencadeia outro (opinião), quer dizer, o que sentimos aflora após uma avaliação do significado de eventos de maneiras que muitas vezes nos escapam à consciência.
Para compreender essa abordagem, examinemos o medo - uma resposta individual ao perigo, como a visão de armas de fogo apontadas em nossa direção ou feras famintas se aproximando. Imaginemos um domador que, enquanto está trabalhando com um leão dentro da jaula, escuta por acaso um espectador dizer a outro que o circo está à beira da falência. Se o domador se assusta, a que se deve seu medo? Provavelmente não ao animal, mas à conversa que acabou de escutar, que estimulou em sua mente o reconhecimento de um perigo para seus interesses, para sua vida. Não existe uma lista definitiva dos eventos que podem provocar medo: o que une todas as circunstâncias que podem produzi-Io é a possibilidade de desencadear a percepção de ameaça ao bem-estar.
Voltemos ao constrangimento: que tipo de avaliação pode desencadeá-Io? Entre os achados de várias pesquisas sobre o tema, destacam-se dois pontos. O psicólogo Rowland S. M iller, professor do Departamento de Psicologia e Filosofia da Faculdade de Humanidades e Ciências Sociais da Sam Houston State University, afirma que a raiz do constrangimento está na antecipação de um juízo negativo por parte do outro. Ou seja, quando percebemos que nossa imagem social está ameaçada e que os outros estão criando uma impressão negativa a nosso respeito. Sem dúvida esse modelo corresponde a muitas situações reais, mas não é completo. Há quem se iniba, por exemplo, quando os amigos cantam Parabéns a você e tem de apagar as velinhas, ou quando sobe ao plco para receber um prêmio na empresa em que trabalha. Aqui o olhar do outro é positivo e não tem nenhum reflexo negativo sobre a pessoa. Então, de onde vem o constrangimento?
O psicólogo John Sabini, pesquisador da Universidade da Pensilvânia, morto em 2005, acreditava queo constrangimento se manifesta, sobretudo, em situações nas quais a interação social é interrompida - e não ficam claros os comportamentos socialmente previstos. Essa abordagem, conhecida como interação difícil (awkward-interaction), afirma que nessas circunstâncias a pessoa não fica tão preocupada em causar má impressão, mas sim em não saber como agir.
A essa segunda interpretação correspondem várias possibilidades. Muitos afirmam que se sentem constrangidos ao se lembrar da dívida com um amigo. Outra situação potencialmente inquietante é a de se ver subrnerso por uma avalanche de elogios à própria aparência. O que responder? Devolver o cumprimento ou concordar, dizendo que, sim, de fato nos sentimos em boa forma? Segundo essa abordagem, nessas ocasiões prevalece a incerteza em relação a como agir.
• Fazendo as pazes
Pesquisas recentes sugerem que apenas uma teoria não seria suficiente para explicar todas as situações possíveis e que podem existir até três "tipos" de constrangimento. Sabini expôs vários cenários a alguns voluntários, perguntando até que ponto eles se sentiam desconfortáveis. Selecionou três tipos de circunstâncias críticas que definiu como "constrangimento do passo errado", "do centro das atenções" e "da dificuldade da situação". Uma-das cenas possíveis do primeiro caso: a pessoa está em público com o zíper da calça aberto. No segundo: ser o homenageado com uma festa-surpresa. Na última situação: ser cobrado por uma dívida que o participante se esqueceu de pagar.
Curiosamente, aqueles que diziam ter ficado mais incomodados em uma determinada ocasião não eram necessariamente os mesmos que se sentiam mal nas outras duas. Além disso, a diferentes traços de personalidade correspondiam diversos tipos de constrangimento: baixa autoestima, por exemplo, parecia mais ligada ao embaraço do movimento falso; já os mais extrovertidos se sentiam menos constrangidos devido à dificuldade da situação.Obviamente esses exemplos dizem e, respeito ao mundo contemporâneo, mas é provável que durante a evolução nossos antepassados tenham deparado com ameaças semelhantes, correndo perigos ainda mais graves. A vida em grupo o é mis vantajosa que a solitária, mas, para que funcione, é inevitável que pessoas harmonizem os próprios comportamentos. Muitos estudiosos defendem que o constrangimento se desenvolveu para atenuar os danos provocados por violações involuntárias de uma regra social. A premissa básica é que quem se preocupava com a imagem inspirada nos outros, e deixava isso claro, tinha maior probabilidade de sobreviver como membro do grupo em comparação àqueles que agiam sem s preocupar com a opinião alheia. A indiferença às reações dos companheiros podia levar ao ostracismo, à marginalização e até à morte.
O constrangimento parece ter três funções fundamentais. Em primeiro lugar, é um gesto de mediação por meio do qual indicamos aos outros que a violação cometida não foi intencional e que dificilmente se repetirá. Em segundo, o medo de incorrer no mesmo estado de ânimo nos impede de repetir o comportamento que o desencadeou. Essa forma de desconforto é considerada o equivalente social da dor física, que nos alerta contra aquilo que ameaça nosso bem-estar físico. O constrangimento nos alerta contra a ameaça social (possível crítica ou rejeição, por exemplo). Além disso, nos leva a reparar o dano cometido e a restabelecer a estima do outro.
Mas manifestar constrangimento tem realmente um efeito positivo nos outros? Com o objetivo de responder a essa pergunta foram cogitados vários estratagemas. Os pesquisadores Gun R. Semin, professor de psicologia social do Departamento de Artes e Ciências da Universidade de Utrecht, Holanda, e Anthony S. R. Manstead, professor de psicologia social da Universidade Cardiff, Grã-Bretanha, filmaram quatro versões diferentes de uma mesma situação: em um supermercado, um homem (sempre o mesmo) derrubava acidentalmente uma pilha de papéis higiênicos de um metro e meio, em seguida demonstrava em alguns casos constrangimento (e em outros não) e arrumava tudo no lugar (ou não). Os voluntários que participavam do experimento assistiam à cena e avaliavam o protagonista. Quando arrumava a pilha com calma, era julgado mais "maduro", mas quando se mostrava constrangido, recebia uma aprovação maior, mesmo que não colocasse os produtos no lugar.
Entretanto, ficar com o rosto corado não basta. Em 2002, o psicólogo Peter J. de Jong, professor de psicologia experimental de psicopatologia da Universidade de Groningen, Holanda, demonstrou que essa reação ocorre mesmo que se perceba que o gesto foi involuntário. Em sua pesquisa, algumas duplas de alunas eram seguidamente submetidas ao "dilema do prisioneiro", um teste em que duas pessoas podem escolher entre cooperar ou trair. Na pesquisa de Jong, o jogo ficou mais interessante com voluntárias que defendiam altos valores sociais e colaboradores para quem o teste tinha sido apresentado como um exame objetivo de comportamento moral. Além disso, para se assegurar da traição, o pesquisador instruiu uma das meninas a agir sem o conhecimento da parceira. Mas as traidoras muitas vezes ficavam vermelhas, e, curiosamente, as que coravam mais eram consideradas as menos confiáveis. Jong considerou que, naquele caso, ficar com o rosto vermelho foi considerado negativo, pois era sentido como sinal de uma violação intencional do código moral.
• Rir de si mesmo
Além de influenciar positivamente aqueles que observam atitudes de constrangimento, a reação parece também predispor emotivamente quem a vive a um comportamento mais social. O psicólogo Robert Apsler, professor do Departamento de Psiquiatria da Harvard Medical School, examinou participantes aos quais havia pedido que realizassem tarefas como imitar uma criança de 5 anos fazendo malcriação enquanto eram acompanhados por um observador através de um espelho. Essa pessoa era um pesquisador, que, na segunda fase do teste, pedia ao voluntário que o ajudasse, meia hora por dia, a preencher questionários. Em geral, quem havia ficado envergonhado tinha disponibilidade maior (15 dias, em média) em relação àqueles que não haviam se incomodado com a encenação (nove dias). Isso evidencia que, mesmo quando o constrangimento é desencadeado por ações pelas quais não somos responsáveis, buscamos garantir segurança social.
Embora seja difícil expressar a própria vergonha, ao fazê-Io obtemos um efeito catártico. O pesquisador Mark L. Leary, professor de psicologia e neurociência do Departamento de Psicologia e Neurociências da Universidade Duke, tentou fazer com que estudantes se sentissem expostos pedindo a eles que cantassem uma canção de amor melosa e depois fazendo críticas à apresentação. Em seguida, os voluntários eram divididos em três grupos: os primeiros faziam uma avaliação do próprio grau de constrangimento preenchendo um questionário anônimo; os do segundo grupo se autoavaliavam também, mas assinaram as respostas com nome e sobrenome; enquanto os do terceiro grupo não tinham nenhuma possibilidade de se expressar. Em seguida, foi estabelecida a duração do constrangimento para cada um. O pesquisador descobriu que para quem pôde se expressar, anonimamente ou não, o sentimento de vergonha havia desaparecido e as pessoas até riam de si mesmas. No entanto, aqueles que não tiveram a possibilidade de escrever a respeito continuavam se sentindo ridículos.
Pode ser que, uma vez desencadeado o constrangimento, seja mais fácil dissipar essa sensação quando adotamos um comportamento distanciado - por exemplo, ao nos mostrarmos de algum modo conscientes ou descontentes com a situação. A ideia é confirmada quando se observa que quem cometeu um gesto constrangedor, principalmente se provocou um mal-estar nos outros, tende a desmanchar-se em desculpas ou em tentativas de reparação.
• Fuga para a esquerda
As violações do protocolo social podem ser voluntárias ou acidentais. Imaginemos que alguém faça um comentário ofensivo: muito provavelmente seus gestos logo a seguir revelarão as intenções que o animaram. Se o comentário é acompanhado por sinais de constrangimento, significa que a violação às normas sociais não foi acidental, e o comportamento suscitará indulgência; mas se os sinais não aparecerem, os presentes poderão suspeitar que ele rejeita os valores socialmente compartilhados, ou que quem fez o comentário seja movido por razões "inquietantes". Para distinguir entre as duas possibilidades é importante ter à disposição uma série de indícios não verbais.
O constrangimento tem complexas manifestações desse tipo, que seguem uma progress&ati ões do protocolo social podem ser voluntárias ou acidentais. Imaginemos que alguém faça um comentário ofensivo: muito provavelmente seus gestos logo a seguir revelarão as intenções que o animaram. Se o comentário é acompanhado por sinais de constrangimento, significa que a violação às normas sociais não foi acidental, e o comportamento suscitará indulgência; mas se os sinais não aparecerem, os presentes poderão suspeitar que ele rejeita os valores socialmente compartilhados, ou que quem fez o comentário seja movido por razões "inquietantes". Para distinguir entre as duas possibilidades é importante ter à disposição uma série de indícios não verbais.
O constrangimento tem complexas manifestações desse tipo, que seguem uma progressão temporal. A expressão típica consiste em baixar os olhos e inclui frequentes deslocamentos do olhar, em particular para a esquerda. Há suposições de alguns estudiosos de que voltar
os olhos à esquerda indica a ativação do hemisfério direito, implicado no processamento de emoções negativas associadas à preocupação e à busca de saídas para situações angustiantes. O que se sabe é que a demonstração de constrangimento tende a seguir um padrão,
que dura cerca de cinco segundos. Um gesto típico nesses casos é tocar frequentemente o rosto. A ação é seguida de um sorriso, muito diferente do de alegria. Este último exige a contração combinada de dois músculos, o zigomático maior, que ergue os ângulos da boca, e o orbicular, que faz a pele repuxar ao redor dos olhos. No caso de constrangimento, entretanto, os lábios se curvam para o alto, mas não há o enrugamento das pálpebras. Além disso, a pessoa tende a desviar o olhar por aproximadamente um segundo e meio antes de parar de sorrir, enquanto no sorriso "de bom humor" isso ocorre cerca de meio segundo depois.
Apesar dessa sequência, para muitos, o principal sinal de constrangimento é mesmo o fato de ficar com a face avermelhada. O mais curioso, entretanto, é que podemos nos sentir constrangidos sem corar, e vice-versa. Já se sabe que o rubor começa com um afluxo mais intenso de sangue no rosto, seguido por um aumento gradual da temperatura da face. A consciência de estar corando, porém, parece ligada à percepção da variação da temperatura, e aí ocorre algo curioso: provavelmente os outros nos veem corar muito antes de percebermos esse efeito.
Algumas pesquisas realizadas em meu laboratório revelaram outros aspectos fisiológicos do constrangimento. Medimos repetidamente a pressão arterial e o ritmo cardíaco de alguns voluntários que, na presença de estranhos, assistiam a uma gravação de dois minutos na qual pessoas cantavam o hino nacional americano. Durante o primeiro minuto, a pressão sanguínea deles deu um salto, continuando a aumentar por todo o segundo minuto com um crescimento médio de 16 milímetros na sistólica e 10 milímetros na diastólica - uma alteração notável, considerando a ausência de atividade física.
Além disso, durante o primeiro minuto de visão o coração começou a bater mais rápido, mas, diferentemente do que aconteceu com a pressão arterial, no segundo minuto voltou aos índices normais. Nos outros estados ernotivos - como raiva, medo e alegria -, o ritmo cardíaco
e a pressão arterial tendem a subir e a descer juntos: a alteração é peculiar ao constrangimento, e isso significa que não existe apenas uma expressividade característica, complexa e não verbal do constrangimento, mas também reação cardiovascular.
• Correndo riscos
Embora os sentimentos de vergonha e constrangimento muitas vezes se confundam, estudos indicam que se trata de fato de emoções diversas, A primeira refere-se a erros mais leves e se manifesta quase sempre na presença de outras pessoas - daí pensarmos neles como
"pequenas vergonhas". A segunda aparece em casos de transgressões mais sérias - e pode mos senti-Ia mesmo quando estamos sozinhos. Dificilmente sorrimos depois de protagonizar um episódio do qual nos envergonhamos. Em contrapartida, o sorriso aparece quase automaticamente quando ficamos constrangidos. O limite entre os dois eventos, porém, é subjetivo e impreciso. Em muitas culturas - como a maioria das asiáticas - existe somente um termo para descrevê-Ios. É preciso considerar, no entanto, que as pessoas apresentam fortes semelhanças interculturais em situações embaraçosas. O que perturba muito crianças iranianas e japonesas, por exemplo, é muito semelhante: sentirem que estão sendo observadas ao tirar a roupa ou ao ser criticadas. Em ambas as línguas é usada a mesma palavra para designar constrangimento evergonha. E, segundo algumas pesquisas, de forma geral, ao longo da história, as mulheres têm passado por mais situações constrangedoras que os homens.
Apesar de a experiência de ser exposto diante dos outros e até mesmo de sentir-se ridicularizado tenha importante função social, há nessa história umlado sombrio. Muitas vezes as pessoas-se mostram dispostas a qual quer coisa para evitar constrangimentos - que, em essência, são absolutamente irrelevantes. Chegamos mesmo a correr riscos de forma irracional- e a impor isso aos outros. Sabini afirma, por exemplo, que a omissão de socorro em circunstâncias de potencial emergência - um fenômeno que fascinou os psicólogos sociais por décadas - é quase sempre motivada pelo temor de uma situação constrangedora. Quem socorre teme fazer papel de tolo reagindo a uma circunstância que poderia ser normal. Imagine alguém se agitando convulsivamente no mar. Está se afogando ou está só brincando? Um cálculo racional deveria mostrar o custo de um falso alarme como menos significativo que a omissão de socorro. No entanto, não é raro que as pessoas hesitem por bastante tempo. Às vezes por tempo demais.
Há exemplos ainda mais cotidianos, que podem colocar em risco a própria saúde e a dos outros. É o caso da opção por não usar preservativo: é comum jovens ficarem sem graça na hora de comprar esse artigo, algo que escapa à racionalidade. Nos últimos anos também se revelou que o medo do constrangimento pode dissuadir as pessoas a se submeterem a exames como Papanicolau, mamografia, colonoscopia ou exame de próstata com consequências às vezes desastrosas.
De fato, é desconcertante que tanta gente se deixe condicionar por receios ilógicos; expondo-se a doenças graves, mas