O Enem mostra que os brasileiros concluem a escola com deficiências básicas - o que lhes subtrai a chance de competir em igualdade de condições com jovens de todo o mundo.
Revista Veja - por renata Betti, Luis Guilherme Barrucho e Sandra Brasil
Quando o prêmio Nobel de Física Richard Feynman (1918-1988) esteve no Brasil, nos anos 50, ficou assombrado com o que viu. Ao tomar contato com estudantes às vésperas do vestibular, espantaram-no tanto o pendor local pela decoreba de fórmulas como a completa ignorância sobre seu significado. Anos mais tarde, registraria em seus escritos aquilo que entendeu como um paradoxo brasileiro: entre os estudantes do mundo inteiro. os jovens que conheceu nos trópicos eram os que mais se debruçavam sobre a física e os que menos sabiam sobre a matéria. À medida que o ensino médio foi se expandindo no pais - em seis décadas, o porcentual de jovens matriculados passou de 3% para os atuais 51% -, a desvantagem escolar observada por Feynman só se agravou. As aulas são rasas, desinteressantes, incapazes de preparar os estudantes do século XXI para disputar espaço em um mercado de trabalho global, no qual a capacidade de inovar é cada vez mais valiosa. Alerta o sociólogo Simon Schwartzman: "Se não começar a desatar os nós do ensino médio, o Brasil vai ficar para trás". O recém-divulgado Exame Nacional do Ensino Médio (Enern), prova aplicada pelo Ministério da Educação a 3,2 milhões de estudantes do pais inteiro, dá a dimensão exata do abismo a vencer. É um espanto. Dos 23.900 colégios públicos e particulares submetidos ao teste, não mais que 1500 - ou 6% da amostra - têm nível semelhante ao das escolas de países da OCDE (organização que reúne os mais ricos). O Enem trata de desmistificar uma ilusão que muitos pais cultivam ao matricular seus filhos em uma instituição privada - a de que eles ganharão um passaporte para o sucesso na vida adulta. Pois mesmo muitas das escolas que têm renome, prédios vistosos e mensalidades altas não resistem à comparação com suas congêneres estrangeiras: 80% oferecem na sala de aula qualidade equivalente à das escolas apenas medianas do mundo desenvolvido. Pasmem: na faixa dos 15 anos, estudantes demonstram dificuldade de resolver operações simples de matemática, como frações e porcentagens, e de compreender textos curtos.
Várias razões explicam o cenário de terra devastada - a começar pelo despreparo dos professores. A maioria deles desembarca na sala de aula sem nenhuma estratégia para despertar o interesse de jovens inseridos em um mundo no qual o saber enciclopédico deixou de fazer sentido diante da internet, a verdade, as deficiências de nossos mestres começam no nível mais básico. Os egressos das faculdades de pedagogia e das licenciaturas sabem pouco, ou nada, de didática, já que 80% do que aprenderam foram teorias obsoletas permeadas de bordões ideológicos. Às vésperas de formar-se pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Liliane Maria dos Santos, de 27 anos, dá o retrato acabado desse equívoco: "Eu e meus colegas não estarnos preparados para enfrentar a vida real na escola". Sobre o ensino médio pesa ainda um déficit de 40.000 professores, principalmente de matemática, química e física, segundo o MEC. São vagas preenchidas com gente de outras especialidades ou que nem mesmo chegou à faculdade. A escassez de cérebros para o ensino atinge escolas públicas e particulares. "É raridade encontrar um professor realmente bom", diz o diretor Adilson Garcia, do Colégio Vértice, em São Paulo, o terceiro colocado no ranking nacional do Enem.
O ensino médio brasileiro se apoia em uma equação que não tem como dar certo: em nenhum outro lugar do mundo se despeja tanto conteúdo na lousa em tão pouco tempo. No afã de suprir todas as demandas do vestibular e agora as do Enem - hoje passaporte de entrada para 167 universidades públicas e mais de 500 particulares -, o currículo só cresce, amontoando temas que mobilizam apenas os estudantes brasileiros. Para se ter uma ideia, o número de tópicos apresentados ao aluno nas aulas de matemática chega a ser dez vezes o que aprende um típico estudante de Singapura (com o detalhe de que nós estamos na rabeira e eles, no topo). A velha cultura corporativista também tem sua parcela no inchaço do currículo. Ele vai inflando à medida que grupos com interesses próprios lutam pela inclusão de mais e mais disciplinas. Ocorreu recentemente com filosofia e sociologia, hoje obrigatórias, e periga se repetir com esperanto e linguagem de sinais, que figuram entre os oitenta projetos do gênero que aguardam votação no Congresso Nacional. "O ensino médio é um verdadeiro massacre de matérias dadas de forma muito superficial", diz a estudante carioca Julia Pimentel, de 16 anos.
Espreme-se tudo isso em uma jornada escolar de quatro horas - quando não menos. Pesquisadores que acompanharam o dia a dia de dezoito escolas públicas durante quase um ano chegaram a uma conclusão estarrecedora: mesmo entre as melhores, o tempo liquido em sala de aula não passava de duas horas e treze minutos, contado no relógio. O desperdício se deve ao absenteísmo dos mestres, às greves e indisciplina - esta um mal também muito disseminado em colégios particulares, que, em geral, não sabem lidar com o problema. "Ver alunos e professores concentrados na sala de aula é coisa rara", resume Wanda Engel, superintendente do Instituto Unibanco coordenadora do estudo, feito em parceria com o Ibope. Para efeito de comparação, nos países de melhor ensinos jovens passam, em media, seis hora na escola, às vezes até oito.
Os problemas do ens sino médio começam a ser gestados bem antes, no nível fundamental. "Os alunos brasileiros acumulam deficiências tão graves que, ao chegar à etapa seguinte, ficam boiando na aula", diz a doutor em educação Maria Inês Fini. A metade dos 3,6 milhões que chegam a essa etapa acaba debandando dos bancos escolares antes do fim do ciclo - um funil que não condiz com uma economia que demanda cada vez mais gente bem formada. O fracasso do ensino médio torna necessária uma reflexão sobre o modelo brasileiro - único no mundo. Enquanto em países da OCDE os jovens podem escolher entre uma gama de escolas e disciplinas, no Brasil o sistema é igual para todos, maçante e enciclopédico, à revelia das diferenças de interesses e expectativas de cada um. Não custa trazer à realidade brasileira as palavras do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592), que se preocupava com o ensino nas escolas de seu tempo. No período final da Renascença, ele dizia: "Uma cabeça benfeita vale mais do que uma cabeça cheia".
• Lição dos que chegaram ao topo
Fatores decisivos para explicar a excelência nas dez escolas campeãs no último Enem.
- Os alunos passam pelo menos seis horas na escola duas a mais que a média brasileira.
- Todos os professores têm ensino superior completo e são permanentemente estimulados a continuar estudando.
- O corpo docente tem, em média, dez anos de casa.
- Há metas acadêmicas claras.
- As aulas são planejadas (e não intuitivas, como é tão comum em escolas brasileiras).
- Os diretores são figuras presentes na rotina escolar.
- Episódios de indisciplina são prontamente punidos.
• O ranking das campeãs
1º - São Bento (particular, RJ)
2º - O Instituto Dom Barreto (particular, PI)
3º - Vértice (Unidade 11) (particular, SP)
4º - Colégio Bemoulli (particular, MG)
5º - Colégio Santo Antônio (particular, MG)
6º - O Colégio Cruzeiro (Centro) (particular, RJ)
7º - Educandário Santa Maria Goretti (particular, PI)
8º - Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa (Coluni) (pública, MG)
9º - Colégio Santo Agostinho (Novo leblon) (particular, RJ)
10º - Coleguium (particular, MG)
• O atraso brasileiro
A comparação entre o ensino médio no Brasil e em países da OCDE ajuda a entender por que ainda ocupamos a rabeira dos rankings.
BRASIL |
OCDE |
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Formação dos professores | As faculdades de pedagogia dedicam apenas 20% do tempo a questões práticas da sala de aula. Pior: mais de 40000 professores nem sequer pisaram em uma universidade | Voltados para a prática, os cursos de pedagogia chegam a exigir estágios em que os estudantes precisam atuar em uma escola. Professor sem diploma não pode nem peitear um emprego. |
Tempo em sala de aula | 4 horas (em certas escolas públicas, a jornada não passa de 2 horas) | 6 horas (em países como Coréia do Sul e Finlândia, o turno chega a 8 horas) |
Tipos de escola | Só existe um único modelo, ainda que os alunos tenham diferentes interesses e objetivos profissionais | Há grande variedade de escolas técnicas - umas para os que querem entrar direto no mercado de trabalho, outras para os que almejam a faculdade - e ainda um grupo para alunos que almejam as melhores universidades. |
Alunos com bom nível de leitura | 23% | 58% |