Por acelerar o metabolismo, a irisina vem sendo chamada de "ginástica em gotas". Ela é o mais novo achado da intricada e fascinante rede hormonal que rege nosso corpo e nossa mente.
Revista Veja - por Adriana Lopes e Natalia Cuminale
A existência humana é definida por um mar interior." Com essa certeza, o médico francês Claude Bernard (1813-1878), considerado o pai da fisiologia, entrou para a história da medicina. O "mar interior" foi a metáfora usada para sintetizar o seu último (e maior) achado: o de que o organismo é controlado por "fluidos que circulam pelo corpo". Até então, acreditava-se que as células trabalhavam em circuitos fechados, sem comunicação entre eles. A mudança de paradigma aconteceu em 1848, a partir de experimentos com cachorros. Ao analisar as entranhas dos animais, Bernard percebeu que substâncias produzidas no pâncreas e no fígado poderiam ser encontradas também em órgãos distantes, como os intestinos. Foi dado ali, em um laboratório do College de France, em Paris, o primeiro passo para a descoberta dos intricados mecanismos reguladores do mar interior que determinam a existência humana - os hormônios.
Até agora, contam-se duas centenas de hormônios e, graças a eles, nossas células são abastecidas de energia, nosso coração bate, nossas artérias pulsam, temos fome e nos saciamos, dormimos, acordamos e nos emocionamos. Tão poderosos são que, caso fossem agrupados, todos os hormônios circulantes em nosso organismo somariam apenas
dez gotas. Ao longo do século XX, a compreensão sobre eles avançou extraordinariamente, mas as pesquisas estão em constante ebulição. Data apenas de um mês, por exemplo, o anúncio do detalhamento da ação da irisina, o hormônio produzido pelos músculos com ação nas células de gordura - ele próprio revelado no início do ano. A medida da importância desse achado é dada pelo endocrinologista Freddy Eliaschewitz, diretor do Centro de Pesquisas Clfnicas (CPClin): "Fazia pelo menos duas décadas que não se via uma novidade tão impactante na área".
As descobertas sobre a irisina foram divulgadas pelas prestigiosas revistas científicas Nature e Cell. Os estudos conduzidos pelo médico Bruce Spiegelman, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, avaliaram o impacto da irisina em camundongos. Durante três semanas, as cobaias praticaram uma hora diária de atividade física sobre rodas (o equivalente a um exercício em esteira ergométrica), em ritmo de caminhada rápida. A partir do 21° dia (da décima semana no calendário humano), os animais produziram irisina em quantidade suficiente para ativar em determinadas células de gordura a termogênese, processo no qual ocorre a produção de calor. Ou seja, o que se mostra aqui é que a irisina tem o poder de acelerar o metabolismo do tecido adiposo (em até cinquenta vezes) e, portanto, de fazer emagrecer.
De posse dessas informações, os pesquisadores desenvolveram em laboratório a versão sintética do horrnônio. O composto foi então injetado em camundongos obesos e sedentários, alimentados à base de uma dieta hipercalórica, rica em gorduras. Ao cabo de dez dias, apesar da inatividade física e do excesso de comida gordurosa, os roedores perderam 2% do peso corporal - o que, entre homens e mulheres, equivale a uma redução de 4 quilos em seis meses. Nenhuma outra substância, seja ela hormônio, alimento ou suplemento, é capaz de aumentar nesse grau (e de forma tão rápida) a velocidade de funcionamento do organismo. As experiências com a irisina em humanos devem começar a partir de 2013. "Confirmados os resultados obtidos com as cobaias, estará deftagrada a maior revolução no tratamento da obesidade desde os tempos da descoberta dos anorexígenos, na década de 40", diz o endocrinologista Antonio Carlos do Nascimento. Trocando em miúdos, a irisina é a ginástica em cápsula - ou em gotas.
Depois de ser liberada pelas fibras musculares, a irisina chega às células de gordura, onde estimula a produção da enzima UCPl. A célula sofre então uma alteração em sua estrutura química e, em vez de estocar a gordura, passa a queimá-Ia, sob a forma de calor. As células transformadas pela irisina foram chamadas de células bege, já que, no processo de terrnogênese, absorvem mais ferro e, por isso, escurecem. A pesquisa publicada na revista Cell mostrou que as células bege possuem, em relação às células adiposas normais (as brancas), uma quantidade cerca de vinte vezes superior de mitocôndrías, as pequenas usinas de energia localizadas no interior dessas estruturas. Normalmente, a maioria dessas miniusinas se mantém desativada, e elas só en tram em funcionamento sob a ação do hormônio - liberado pelo exercício físico. Suspenso o estímulo da ginástica, essas mitocôndrias são desativadas e a célula retoma seu comportamento original, de estocar energia na forma de gordura. Até o artigo na revista Cell descrever as células bege, acreditava-se que a irisina agia nas células marrons, encontradas sobretudo em recém-nascidos. Nas primeiras semanas de vida, quase um terço da gordura corporal dos bebês é formada pela gordura marrom, que, sob temperaturas baixas, produzem intenso calor. Em outras palavras, as células marrons fazem o mesmo que as bege, só que sem precisar da irisina. Elas são importantes para a adaptação do recém-nascido à temperatura fora do útero materno.
A irisina pertence a um dos chamados circuitos hormonais paralelos. Ou seja, ela é produzida por um órgão fora do eixo híporalamo-hípófise, da mesma forma que a insulina, sintetizada no pâncreas, e a leptina, nas células de gordura. Imagine os 200 hormônios organizados como numa orquestra. Os sistemas paralelos equivaleriam às orquestras de câmara, que, apesar de parecer funcionar de forma independente, têm de seguir o ritmo do conjunto. Nessa com posição, o cargo de diretor artístico caberia ao hipotálamo, uma glândula minúscula localizada no miolo do cérebro. A regência dessa orquestra bioquímica, no entanto, seria da hipófise, glândula do tamanho de um grão de feijão encontrada na base do crânio. Descrita pela primeira vez no ano 150 pelo médico grego Claudio Galeno (129-216), a hipófise só foi definida como o maestro dos hormônios nos anos 1920, pelo endocrinologista americano Philip Edward Smith (1884-1970). Entre os vários hormônios produzidos pela hipófise, seis estão envolvidos em 70% do funcionamento da máquina humana. Essa glândula é tão vital que, caso seja tomada por um tumor, perde suas funções gradativamente e de acordo com uma hierarquia bem definida. Nela, os hormônios menos importantantes para a sobrevivência deixam de ser produzidos antes. As primeiras células a entrar em falência são as produtoras do GH, o hormônio do crescimento. "Se a reposição de GH não ocorre, o paciente pode levar uma vida péssima, com alterações graves de memória e perda de massa óssea e muscular, mas dificil mente morrerá por causa desse desfalque horrnonal", diz Malebranche Berardo Carneiro da Cunha Neto, neuroendocrinologista do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Na escala de prioridades, o ACTH, em caso de comprometimento da hipófise, é um dos últimos que deixam de ser fabricados. Tal composto é o precursor do cortisol, o hormônio do stress. Entre as suas funções, uma das mais importantes é manter a pressão arterial. Sem ele, o sangue deixa de circular adequadamente e, em consequência, os órgãos entram em falência. Não há vida sem cortisol. Além disso, do ponto de vista evolutivo, o hormônio tem um papel fundamental. Diante de uma ameaça iminente, é ele que nos põe em posição de alerta - para enfrentar o perigo ou fugir dele.
Chaves da vida, os hormônios têm uma complexidade de ação que fascina. Por vezes, é preciso que dois ou mais se aliem para cumprir uma mesma função. Para manter o equilíbrio hídrico do organismo, por exemplo, são necessários pelo menos quatro hormônios fabricados em locais diferentes. Um hormônio pode ainda servir para estimular a produção de outro. É o caso da grelina. Produzida pelo estômago com a função de abrir o apetite, na hipófise, ela tem a missão de ajudar na síntese de GH, o hormônio ligado ao crescimento. Um terceiro exemplo do intricado funcionamento da teia hormonal é o fato de que, a depender da quantidade produzida, da sensibilidade do alvo atingido e do estímulo externo, um mesmo hormônio pode exercer funções completamente diferentes. É o que acontece com um dos mais intrigantes compostos produzidos pelo organismo, a oxitocina.
Fabricada pelo hipotálamo e dístribuída pela hipófise, ela auxilia a produção do hormônio insulina no pâncreas e participa do transporte do esperma nos testículos. É a oxitocina também a responsável pelas contrações uterinas no momento do parto e durante a relação sexual. Ela ainda está presente durante a amamentação, facilitando a liberação do leite materno. Por ser um dos poucos hormônios produzidos diretamente no cérebro, a oxitocína é uma das substâncias que mais influenciam o comportamento humano. É ela que regula a intensidade dos vínculos afetivos, a autoconfíança e a sensação de relaxamento. A tesrosterona é outro hormônio curioso. Embora seja fabricada também pelo organismo feminino, ela é o hormônio masculino por excelência. Em ambos os sexos, a testosterona está envolvida na produção de ossos, massa muscular e oleosidade da pele. Ao agir no cérebro, estimula a libido. O fato de o sexo masculino produzir cerca de trinta vezes mais testosterona do que o feminino explica por que os homens são em geral mais fortes e mais peludos, têm a voz mais grossa e estão sempre pensando naquilo.
Graças aos progressos na área da biotecnologia, hoje é possível a fabricação de hormônios quimicamente idênticos aos produzidos naturalmente pelo organismo. "A reposição hormonal, como a que é feita na menopausa, aplica-se a absolutamente todas as situações causadas pela falta de hormônio"", diz Marcos Tambascia, endocrinologista da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Um desafio ainda persiste: não basta que os hormônios sintéticos tenham a mesma estrutura química de seus equivalentes naturais. É preciso fazer com que eles se submetam aos comandos do organismo como os originais. Por isso é tão complicado (mas não impossível) o tratamento, por exemplo, do diabetes. Em um organismo saudável, a insulina é liberada em doses precisas, que, ao longo de um único dia, variam muitas vezes em função de diferentes circunstâncias. A indústria farmacêutica tentou contornar o problema com a criação de insulina de longa e curta duração. Mas, apesar dos acertos, esses medicamentos
ainda não conseguem acompanhar totalmente o ritmo natural do organismo. Como o mar de verdade, o da metáfora de Claude Bernard é vasto, fascinante e cheio de segredos ainda por desvendar.
• Orquestra afinada
Imagine o sistema hormonal como uma orquestra. O hipotálamo, no miolo do cérebro, é o diretor artístico, e a hipófise, na base do crânio, o maestro. Nesse conjunto, os hormônios sintetizados por outros órgãos e glândulas equivalem às orquestras de câmara. Como em um concerto, em que todos os músicos tocam juntos, os hormônios interagem entre si - e o bom funcionamento de um depende da ação precisa de outro. No quadro abaixo, com a consultoria dos médicos Malebranche Berardo Carneiro da Cunha Neto, Freddy Eliaschewitz e Antonio Carlos do Nascimento, VEJA listou o mecanismo de síntes em acompanhar totalmente o ritmo natural do organismo. Como o mar de verdade, o da metáfora de Claude Bernard é vasto, fascinante e cheio de segredos ainda por desvendar.
• Orquestra afinada
Imagine o sistema hormonal como uma orquestra. O hipotálamo, no miolo do cérebro, é o diretor artístico, e a hipófise, na base do crânio, o maestro. Nesse conjunto, os hormônios sintetizados por outros órgãos e glândulas equivalem às orquestras de câmara. Como em um concerto, em que todos os músicos tocam juntos, os hormônios interagem entre si - e o bom funcionamento de um depende da ação precisa de outro. No quadro abaixo, com a consultoria dos médicos Malebranche Berardo Carneiro da Cunha Neto, Freddy Eliaschewitz e Antonio Carlos do Nascimento, VEJA listou o mecanismo de síntese e ação dos trinta principais hormônios, que participam de 70% de todas as funçôes do corpo humano.
- SISTEMA CENTRAL
Oxitocina
CÉREBRO: Ativa as regiões cerebrais relacionadas às sensações de autoconfiança, vínculos afetivos e relaxamento.
MAMAS: Está envolvida na contração das células musculares mamárias, propiciando a ejeção de leite, no período da lactação.
PÂNCREAS: Auxilia a produção do hormônio insulina.
ÚTERO: Estimula as contraçôes uterinas durante o trabalho de parto e a relação sexual.
TESTíCULOS: Participa do transporte do esperma.
ADH
RINS: Participa do mecanismo de retenção de água.
VASOS SANGUíNEOS: Com ação vasoconstritora, é fundamental no processo de contração e dilatação das artérias.
GH
CÉLULAS: Reduz a entrada de glicose e aumenta a produção de proteínas.
CÉLULAS ADlPOSAS: Evita o acúmulo de gordura nas células, sobretudo a do tipo visceral.
FíGADO: Libera a glicose para a corrente sanguínea. Estimula a produção do hormônio
IGF-1
OSSOS e MÚSCULOS: Está envolvido no processo de renovação das células ósseas e musculares.
CORAÇÃO: Participa do mecanismo de contração do músculo cardíaco.
TRH - Prolactina
CÉREBRO: Reduz a libido.
MAMAS: Deflagra e mantém a produção de leite durante a lactação.
SISTEMA IMUNOLÓGICO: garante o bom funcionamento dos linfócitos.
TRH - THS
TIREOIDE: Permite a fabricação do hormônio
T4
FíGADO:. Participa da transformação do hormônio T4 no hormônio T3
CORAÇÃO: Ajuda no controle da frequência cardíaca.
CÉLULAS: Estimula o metabolismo de gordura e glicose.
INTESTINOS: Regula o mecanismo de contração e relaxamento da parede intestinal.
CRH-ACTH
GlÂNDULAS SUPRARRENAlS: Incentiva a síntese do hormônio
cortisol
CÉLULAS: Diminui o ritmo de entrada de glicose nessas estruturas.
VASOS SANGUíNEOS: Participa do mecanismo de manutenção da pressão arterial.
RINS: Facilita a eliminação de água.
FíGADO: É fundamental para o equilíbrio das taxas sanguíneas do hormônio T3
CORAÇÃO: Estimula a contração muscular e os batimentos cardíacos.
GnRH - LH
Nos homens
TESTÍCULOS: Deflagra a fabricação do hormônio testosterona.
OSSOS: Incrementa a formação de células construtoras de ossos.
MÚSCULOS: Aumenta a massa muscular.
CÉREBRO: Ativa as áreas associadas ao desejo sexual.
PELE: Participa da formação e da manutenção dos pelos.
CORDAS VOCAIS: Na puberdade, é o responsável pelo engrossamento da voz.
Nas mulheres
OVÁRIOS: No período da ovulação, participa da síntese dos hormônios estrógeno, progesterona.
ÚTERO: Mantém a saúde do endométrio.
RINS: Participa do mecanismo de reabsorção de água e sal .. e testosterona
CÉREBRO: Ativa as regiões associadas à libido.
GnRH - FSH
TESTíCULOS: Ajuda na produção de espermatozoides.
OVÁRIOS: Está envolvido na produção de óvulos. Participa da produção do hormônio estrógeno
ÚTERO: Está envolvido na regulação do ciclo menstrual.
MAMAS: Na puberdade, é combustível para a formação das mamas e, na gravidez e na lactação, ajuda na fabricação de leite.
CÉLULAS ADIPOSAS: É responsável pela distribuição das células adiposas pelo corpo.
OSSOS: Aumenta a produção de massa óssea.
HIPÓFlSE: Estimula a produção do hormônío prolactina
- SISTEMAS PARALELOS
Coração
Produz o hormônio BNP
RINS: Está envolvido no mecanismo de eliminação de água e sal.
Pâncreas
Produz os hormônios insulina e glucagon.
CÉLULAS: A insulina permite a entrada da glicose, que é transformada em energia.
FíGADO: O glucagon favorece a liberação de glicose para a corrente sanguínea
Ossos
Produzem o hormônio osteocalcina
PÂNCREAS: Influencia na produção de insulina.
Gordura
Produz os hormônios leptina e adiponectina
HIPOTÁLAMO: A Ieptina estimula a saciedade.
CÉLULAS ADIPOSAS: Para a produção de energia, a leptina aumenta o metabolismo de ácidos graxos. A adiponectina torna os tecidos mais sensíveis à ação do hormônio insulina.
Rins