O Código de pesquisadores estão chegando às regras usadas pelo cérebro na formação de lembranças. A descoberta desse código da memória pode levar ao desenvolvimento de computadores e robôs mais inteligentes e até mesmo a novas formas de observar a mente humana.
Scientific American - por Joe Z. Tsien
Qualquer um que já esteve em um terremoto tem lembranças vívidas: o solo vibra, treme, fica abalado e se desloca; o ar se enche de estrondos, sons de rachaduras e de vidro estilhaçando; armários se abrem; livros, pratos e bugigangas caem das prateleiras. Lembramo-nos desses episódios - com uma clareza notável mesmo anos depois - porque é isso que nosso cérebro evoluiu para fazer: extrair informação de eventos relevantes e usar esse conhecimento para guiar nossa resposta a situações semelhantes no futuro. Essa capacidade de aprender com experiências anteriores permite a todos os animais se adaptar a um mundo que é complexo e está em constante mutação.
Por décadas, neurocientistas tentaram descobrir como o cérebro produz lembranças. Agora, combinando um conjunto de novos experimentos a análises matemáticas poderosas e à capacidade de gravar simultaneamente a atividade de 200 neurônios em camundongos despertos, meus colegas e eu descobrimos o que acreditamos ser o mecanismo básico usado pelo cérebro para extrair informação vital das experiências e transformá-la em lembranças. Nossos resultados se somam a trabalhos cada vez mais numerosos que indicam que um fluxo linear de sinais de neurônio a neurônio não é suficiente para explicar como o cérebro representa percepções e lembranças. Na verdade, essas representações demandam atividade coordenada de grandes populações de neurônios.
Além disso, nossos estudos indicam que as populações de neurônios envolvidas na codificação de lembranças também discernem os conceitos gerais que nos permitem transformar nossas experiências diárias em conhecimento e idéias. Nossos resultados deixam os biólogos mais próximos de decifrar o código neuronal universal: as regras que o cérebro segue para converter seqüências de impulsos elétricos em percepção, memória, conhecimento e, ao final, comportamento. Essa compreensão pode levar ao desenvolvimento de interfaces máquina-cérebro mais eficazes, a toda uma nova geração de robôs e computadores inteligentes e talvez até mesmo à elaboração de um livro de códigos da mente, que possibilitaria decifrar - pelo monitoramento da atividade neuronal - o que um indivíduo está lembrando ou pensando.
A conversão de experiências perceptivas em lembranças duradouras emprega uma região do cérebro chamada hipocampo. E sabemos quais são moléculas cruciais para o processo, como o receptor NMDA, que alteramos para produzir Doogie. Mas ninguém sabia como a ativação das células nervosas no cérebro representa a memória. Cheguei a me perguntar se não era possível encontrar uma descrição matemática ou fisiológica da memória. Qual seria a dinâmica relevante da rede neuronal e o padrão da atividade que ocorre quando uma lembrança se forma? Quais seriam os princípios organizadores que permitem às populações de neurônios identificar e registrar os detalhes vitais de uma experiência?
Para aprender sobre o código neuronal envolvido na memorização era preciso primeiro projetar um monitor melhor para o cérebro. Queríamos continuar trabalhando com camundongos, em parte para que pudéssemos mais tarde conduzir experiências com espécimes com capacidade de aprender e lembrar geneticamente alterada, como Doogie e outros mutantes com memória deficiente. Pesquisadores já monitoraram a atividade de centenas de neurônios em macacos despertos, mas os cientistas que trabalham com camundongos só conseguiam registrar a atividade de no máximo 20 ou 30 células ao mesmo tempo - principalmente porque o cérebro desses animais não é muito maior do que um amendoim. Assim, Longnian Lin e eu desenvolvemos um dispositivo de gravação que permite monitorar a atividade individual de um número muito maior de neurônios em camundongos despertos se comportando livremente.
Então planejamos experimentos para tirar proveito do que o cérebro parece fazer melhor: criar lembranças de eventos que podem influir drasticamente na vida de uma pessoa. Testemunhar os ataques terroristas do 11 de Setembro, sobreviver a um terremoto ou mesmo despencar dos 13 andares da Torre do Terror da Disney World são coisas difíceis de esquecer. Assim, desenvolvemos testes que imitavam esse tipo de acontecimento episódico com grande carga emocional. Essas experiências deveriam produzir lembranças fortes e duradouras, envolvendo um grande número de células no hipocampo e aumentando a probabilidade de encontrarmos células ativa das pela experiência e reunirmos dados para revelar qualquer padrão e princípio organizacional envolvidos no processo.
Os acontecimentos episódicos que escolhemos incluíam uma versão de laboratório de terremoto (sacudimos a pequena caixa com o camundongo dentro), um ataque virtual de coruja em vôo, imitado por uma aplicação repentina de jato d de ar nas costas do animal, e uma curta queda livre vertical dentro de um pequeno "elevador". Cada animal foi submetido a sete episódios de cada evento, intercalados com períodos de descanso de várias horas. Registramos a atividade de 260 células na região CA1 do hipocampo, uma área-chave para a formação da memória em animais e seres humanos.
Quando projetamos as respostas coletadas de todos os neurônios de um dos animais nesse espaço tridimensional, quatro "bolhas" distintas de atividade em rede apareceram: uma associada ao estado de descanso do cérebro, outra ao terremoto, uma terceira ao jato de ar e a última à queda livre. Portanto, cada um dos episódios assustadores resultou em um padrão distinto de atividade no conjunto neuronal CA1. Acreditamos que os padrões representam a informação integrada sobre diferentes aspectos perceptivos, emocionais e factuais dos eventos.
Para observar a dinâmica e a evolução dos padrões durante as experiências, aplicamos a técnica "janela deslizante" às horas de dados registrados para cada animal - avaliando as gravações de momento a momento e repetindo a MDA em cada janela de meio segundo. Deste modo, pudemos observar as mudanças nos padrões de resposta à medida que o animal formava lembranças de cada evento. Em um animal que passou pelo terremoto, por exemplo, pudemos perceber o início da atividade do conjunto na bolha de repouso, depois o disparo para a bolha do terremoto e então o retorno ao estado de repouso, desenhando uma trajetória com formato triangular característico.
Essa análise revelou que os padrões de atividade associados às experiências assustadoras ocorreram novamente e de maneira espontânea em intervalos que variaram de segundos a minutos após o evento ter ocorrido de fato. Esses replays exibiam trajetórias semelhantes, incluindo a forma geométrica característica, mas tinham amplitudes menores que as das respostas originais. A recorrência desses padrões de ativação forneceu evidência direta de que a informação que percorreu o sistema do hipocampo inscreveu-se nos circuitos de memória do cérebro - imaginamos que o replay corresponda a uma lembrança da experiência após o fato. Esta capacidade de medir qualitativa e quantitativamente as reativações espontâneas dos padrões de codificação da memória abre caminho para verificar como os traços recém-formados de memória consolidam-se em memórias duradouras. As mesmas medidas podem ainda possibilitar o exame das diferenças entre os processos que ocorrem tanto em camundongos inteligentes quanto naqueles com dificuldade de aprendizado.
Descobrimos que cada evento particular é sempre representado por um conjunto de diques neurais que codifica características diferentes, as quais variam de gerais a específicas. Um terremoto ativa um dique de susto geral (que responde aos três estímulos assustadores); um segundo clique responde apenas aos eventos envolvendo perturbações no movimento (reagindo tanto ao terremoto quanto à queda de elevador); um terceiro é ativado exclusivamente pelo sacudir; e um quarto indica onde o evento ocorreu (para o evento terremoto colocamos o animal em duas caixas diferentes). Assim, a informação sobre esses acontecimentos episódicos é representada por conjuntos de cliques neurais invariavelmente organizados, de forma hierárquica, do mais geral para o mais específico. O arranjo hierárquico forrma uma pirâmide codificadora de características: sua base codifica uma característica mais geral (como "evento assustador") e seu cume, uma informação mais específica (como "trepidação" ou "trepidação na caixa preta").
A região CA1 do hipocampo recebe dados de muitas outras regiões do cérebro e sistemas sensoriais, e essa característica provavelmente influencia que tipo de informação um deterrminado clique codifica. Por exemplo, o clique que responde aos três eventos pode integrar innformações da amígdala cerebral (que processa emoções como medo ou novidade), codificando que "esses eventos são assustadores e chocantes"; os cliques ativados tanto pelo terremoto quanto pela queda podem processar dados no sistema vestibular (que fornece informação sobre perturbações de movimento), codificando assim que "esses eventos me fazem perder o equilíbrio". Já os cliques que respondem apenas a um evento determinado em um local específico podem integrar dados adicionais de "células de localização" (neurônios que disparam quando o indivíduo passa por um ponto familiar específico de seu ambiente), codificando assim que "esse terremoto ocorreu na caixa preta".
Essa abordagem hierárquica e combinatória da formação da memória forneceria ao cérebro meios para gerar um número quase ilimitado de padrões diferenciados e virtualmente únicos de redes, capazes de representar o número também virtualmente infinito de experiências de um organismo. Essa combinação ocorre de forma semelhante à dos quatro nucleotídeos que compõem as moléculas de DNA, gerando um número quase ilimitado de padrões, origem da diversidade de organismos no planeta, teoricamente infinita. E como o código da memória é categórico e hierárquico, a representação de novas experiências pode envolver simplesmente a substituição dos diques específicos que formam o topo das pirâmides de memória para indicar, por exemplo, que o terremoto ocorreu na Califórnia e não na Indonésia.
O fato de cada pirâmide de codificação de memória incluir invariavelmente diques que processam em vez de abstrair informação também reforça a idéia de que o cérebro não é um dispositivo que apenas grava os detalhes de um evento em particular. Na verdade, os diques neurais do sistema de memória permitem que o cérebro codifique características-chaves de episódios específicos e, ao mesmo tempo, extraia a informação geral destas experiências que pode ser aplicada a situações futuras, as quais podem compartilhar características essenciais mas variar em detalhes físicos. Essa capacidade de gerar conhecimento e conceitos abstratos a partir de episódios diários, que é a essência de nossa inteligência, nos permite solucionar os problemas sempre novos que um mundo em constante muutação nos apresenta.
Considere, por exemplo, o conceito "cama". Qualquer pessoa pode entrar em qualquer quarto de hotel no mundo e reconhecer imediatamente a cama, mesmo que nunca tenha visto aquela cama em particular antes. É a estrutura de nosssos conjuntos codificadores de memória que nos permite reter não apenas a imagem de uma cama específica mas a idéia geral do que uma cama é. Pudemos constatar esse fato nos camundongos. Durante as experiências, descobrimos acidentalmente um pequeno número de neurônios do hipocampo que parecem responder ao conceito abstrato "ninho". Essas células respondem a todos os tipos de ninho, sejam redondos ou quadrados, feitos de algodão, plástico ou madeira. Detalhe: coloque uma lâmina transparente entre o ninho e o animal, para que este possa vê-lo mas não entrar nele, e as "células de ninho" deixam de ser ativadas. Elas não respondem às caracteríssticas físicas específicas do ninho - sua aparência, formato ou material- mas à sua funcionalidade: ninho é um lugar para se aconchegar e dormir.
A organização categórica e hierárquica dos cliques neurais provavelmente é um mecanismo geral não apenas para a codificação de lembrannças mas para o processamento e representação de outros tipos de informação - de percepções sensoriais a pensamentos conscientes - em ouutras áreas do cérebro que não o hipocampo. No sistema visual, por exemplo, os pesquisadores descobriram neurônios que respondem a faces, incluindo faces humanas e de macacos, ou mesmo a folhas com formato de face. Outros encontraram células que respondem apenas a uma subclasse de faces. De volta ao hipocammpo, pesquisadores que estudam pacientes com epilepsia descobriram um subgrupo de células que em resposta a imagens de pessoas famosas aumentam sua taxa de ativação. Itzhak Fried, da University of California, em Los Angeles, registrou o fato fascinante de que uma única célula no hipocampo de um paciente parecia responder apenas à imagem da atriz Halle Berry. Juntos, essses dados sugerem que a organização hierárquica do geral ao específico é um princípio genérico de organização de todo o cérebro.
O código binário do cérebro também poderia fornecer uma estrutura unificadora para o estudo da cognição, mesmo entre espé