Tecnologia pode avançar com rapidez maior que a capacidade humana de adaptação.
Revista Scientific American - por Ulisses Capozolli
Para quem havia chegado recentemente da Terra, o comportamento de Paulus não era surpreendente. Mas isso não o confortava. Contemplando o espaço, escuro como uma montanha de carvão, ele esperava por longos períodos que alguma coisa se movesse do lado de fora da cúpula: um ponto de luz que fosse, trazendo alguém ou alguma coisa. O tempo, no entanto, escoava como a areia de uma ampulheta e, com isso, o silêncio ficava ainda mais pesado e frustrante.
Se você já tentou captar o ruído da areia das ampulhetas, ou se esforçou para equilibrar um par de antigas pilhas de rádio nas proximidades de uma estação de trem - com o solo vibrando como um tambor -, sabe dessas impossibilidades.
No primeiro caso, repetidas tentativas podem produzir ao menos dois resultados: ou o experimentador se lança num túnel que leva à insensatez, ou, na alternativa mais promissora: a sensação de ter realizado seu intento. Mas aqui existem bifurcações, como em estradas secundárias de sinalização precária. O experimentador pode tanto desenvolver um refinado aguçamento auditivo, capaz de captar o impacto de cada grão de areia, quanto ser vítima de pura alucinação.
No espaço, a alucinação é uma velha conhecida. Uma espécie de reedição de histórias registradas em livros envolvendo velhos lobos do mar. Ou exploradores de territórios que no passado foram tão ermos quanto o lado oculto da Lua, que Paulus perscrutava com a luz fraca das estrelas.
A memória disso tudo, daí a referência a navegadores e exploradores do passado, está relacionada à ausência de corroboração coletiva. A falta dessa confirmação faz com que qualquer objeto, coisas como um copo ou um par de luvas, revele de forma inesperada seu lado fantasmagórico.
Na Terra essa condição é potencial. A convivência cotidiana mascara esse processo que, no espaço, salta para o primeiro plano de um observador, independentemente das funções que desempenhe: tripulantes de naves de longo curso, físicos, biólogos, ou equipes da área psi determinadas a investigar cada fresta da mente humana em busca de explicação para um fenômeno tão surpreendente como a consciência e as anomalias que ela costuma apresentar.
O século 20 lapidou uma das joias mais refinadas da literatura nessa área: a fascinante novela Solaris, do escritor polonês Stanislaw Lem, publicada em 1961. Àquela época, os críticos interpretavam a obra de Lem como restrita a limites mais formais da literatura. Ainda que reconhecessem que abordava questões filosóficas com incursões pela tecnologia, natureza da inteligência e consciência. Além de desespero quanto às impossibilidades de comunicação e compreensão entre os humanos. Sem falar do desconforto produzido pela presença indefinida do homem no Universo.
Nada disso era estranho a Paulus. Ao contrário, estava no alicerce de sua formação. Literatura, incluindo relatos de viagem, biografia, poesia e ficção são suportes cognitívos indispensáveis à investigação e produção de ciência de qualidade. Mas nem todo pesquisador científico está consciente disso, o que é uma pena. Para alguns, literatura e ciência são "coisas que não se misturam, como azeite e água. Paulus sempre partilhou da companhia de gente do porte de Erwin Schroedinger, James Jeans, ltalo Calvino e Drummond de Andrade, como quem divide uma mesa de jantar.
Confinado à sala de controle do sistema de espelhos do Giordano Bruno, Paulus viu emergir em sua mente, como fotografias amareladas, a imagem de Ernest Shackleton, explorador irlandês que encarnou o período heroico de exploração da Antártida. Mais de uma vez Shackleton exibiu comportamento que psicólogos não hesitariam em caracterizar como "anormal". Era capaz de prever ocorrências, como acidentes com seus homens, o que ninguém podia fazer, enquanto acampados sobre um campo de gelo flutuante, após o naufrágio do Endurance.
Efeito do isolamento? Não creio que um psicólogo se recusasse a admitir essa sensata possibilidade. De qualquer maneira, é um caso para o princípio da Navalha de Occam. Esse procedimento, atribuído ao frade e lógico William de Ockham, recomenda que a explicação para qualquer fenômeno deva levar em conta as razões estritamente necessárias, eliminando todas as demais. Grosseiramente, equivale à ideia de que a linha reta é a menor distância entre dois pontos fixos, na geometria euclidiana.
Mas, no espaço, Euclides não faz sentido. Nada faz sentido na falta de humanos. Um observador como Paulus pode ter a sensação de um náufrago abandonado à própria sorte em meio a fogueiras distantes, aquecendo supostas caravanas silenciosas junto a outras estrelas. Cada uma cuidando de si, alheia às demais.
Paulus desviou o olhar para o painel de controle do conjunto de espelhos do Giordano Bruno, presos a robôs flutuando no espaço. O recurso da interferometria, formando um espelho virtual de 100 km de diâmetro, permitia ao Bruno resolução de um microssegundo de arco, o bastante para revelar um alfinete na Terra, a partir da Lua.
A tecnologia havia avançado muito e os telescópios já não eram os mesmos.
Os humanos, no entanto, haviam mudado quase nada.