A construção de um enorme simulador digital do cérebro pode transformar profundamente neurocióncia e medicina e revelar alternativas para computadores mais potentes.
Revista Scientific American - por Henry Markaram
Em síntese
A simulação por computador apresentará verossimilhança cada vez maior em representações digitais das operações do cérebro humano. Até 2020 cérebros digitais poderão representar o funcionamento interno de uma única célula cerebral ou até mesmo do cérebro todo. Uma simulação de cérebro pode agir como substituto para a peça verdadeira, promovendo assim um novo olhar sobre o autismo ou permitindo testes virtuais de fármacos.
A biologia reducionista - que examina partes individuais do cérebro, circuitos neurais e moléculas - já nos fez trilhar um longo caminho, mas não consegue explicar o funcionamento do cérebro humano - processador de informações no interior do crânio -, algo talvez inigualável em todo o Universo. O pai do reducionismo, o filósofo francês René Descartes, considerou a necessidade de investigar as partes e então montá-Ias, recriando o todo.
Juntar as partes para elaborar uma simulação completa do cérebro humano é o objetivo de uma empresa que pretende construir um novo instrumento científico fantástico. Ainda não existe nada similar, mas começamos a fazê-lo. Um modo de encarar esse instrumento é considerá-Io o simulador de voo mais poderoso já construido - só que em vez de representar um voo ao ar livre simulará uma viagem pelo cérebro. Esse "cérebro virtual" rodará em supercomputadores e incorporará todos os dados que a neureciência gerou até agora.
O cérebro digital será um recurso para toda a comunidade científica: neurocientistas alocarão tempo nele para realizar experimentos, como astrônomos fazem com os maiores telescópios. Ele será usado para testar teorias sobre como o cérebro humano funciona na saúde e na doença. Será recrutado para auxiliar a desenvolver não só novos testes de diagnóstico para autismo e esquizofrenia, mas também novas terapias para depressão e Alzheimer. A estrutura de conexões de dezenas de trilhões de circuitos neurais inspirará a criação de computadores semelhantes a cérebros e de robôs inteligentes. Enfim, transformará a neurociência, a medicina e a tecnologia da informação.
Até o final desta década cientistas poderão fazer as primeiras simulações do cérebro humano e supercomputadores poderosos darão conta do enorme número de cálculos necessários para isso. O instrumento não exigirá que todos os mistérios do cérebro sejam desvendados desde o início, mas permitirá uma estrutura para acomodar o que sabemos, com possibilidade de projetar o que desconhecemos. Essas previsões mostrarão o foco de experiências futuras, evitando desperdício de energia O conhecimento que geramos será integrado ao já disponível, e as "lacunas" serão preenchidas com detalhes cada vez mais realistas até que tenhamos um modelo unificado de operação, reproduzindo com precisão o cérebro global ao nível de moléculas.
Construir esse instrumento é o objetivo do Human Brain Project (HBP), iniciativa que envolve cerca de 130 universidades em todo o mundo. O HBP é uma das seis iniciativas que competem por um prêmio, de até € 1 bilhão da União Europeia ao longo de mais de dez anos, a cada um dos dois vencedores definidos em fevereiro de 2013.
Rrecisamos do simulador pelo menos por duas razões. Só na Europa, doenças do cérebro afetam 180 milhões de pessoas, ou cerca de uma em cada três, número que tende a crescer com o envelhecimento da população. Ao mesmo tempo as empresas farmacêuticas não estão investindo em novos tratamentos para o sistema nervoso debilitado. Uma visão holística do cérebro nos permitiria reclassificar essas doenças em termos biológicos em vez de encará-Ias como meros conjuntos de sintomas. A amplitude dessa perspectiva nos permitiria avançar, desenvolvendo uma geração de tratamentos que atinjam seletivamente as anormalidades ocultas. O segundo motivo é que a computação se aproxima rapidamente dos limites para maior desenvolvimento. Os computadores não conseguem desempenhar muitas tarefas que o cérebro dos animais executa sem esforço, apesar do aumento de seu poder de
processamento. Embora cientistas da computação tenham feito enorme progresso no reconhecimento visual, as máquinas ainda lutam para fazer uso do contexto numa cena ou para usar fragmentos aleatórios de informações de modo a prever eventos futuros da mesma forma que o cérebro.
Além disso, como os computadores mais potentes demandam mais energia, algum dia suprir suas necessidades não será mais viável. O desempenho dos supercomputadores atuais é medido em petaflops - quatrilhões de operações lógicas por segundo. A próxima geração, que deverá ocorrer por volta de 2020, será mil vezes mais rápida e será medida em exaflops - quintilhões de operações por segundo. Provavelmente, a primeira máquina em escala "exa" consumirá cerca de 20 megawatts, equivalente à demanda de energia de uma cidadezinha americana no inverno. Necessitamos de uma estratégia totalmente in nédita para criar computadores cada vez mais poderosos que executem algumas coisas simples, mas úteis, que os seres humanos conseguem fazer com uso eficiente de energia.
Poderíamos fazer pior que nos inspirarmos no cérebro humano, que realiza várias funções inteligentes com meros 20 ou mais watts - 1 milhão de vezes menos que uma máquina em escala "exa"" Para isso, precisamos entender a organização dos vários níveis do cérebro, de genes a comportamentos. O conhecimento está lá, mas precisamos reuni-lo, e nosso instrumento fornecerá a plataforma para isso.
• Meta impossível
Críticos afirmam que o objetivo de modelar o cérebro humano é inatingível. Um dos principais obstáculos para isso é a impossibilidade de reproduzir a conectividade entre os 100 trilhões de sinapses do cérebro, pois não podemos medi-Ia. Eles estão certos de que não podemos medir a rede de conexões; é por isso que não vamos fazê-lo, pelo menos não totalmente. Pretendemos reproduzir a miríade de conexões entre células cerebrais por diferentes meios.
A chave de nossa abordagem é a elaboração do projeto básico segundo a estrutura cerebral: o conjunto de normas que norteou sua construção durante a evolução e sua reprodução em todos os fetos em desenvolvimento. Em teoria, essas normas são tudo de que necessitamos para começar a construir um cérebro. Os céticos estão certos: a complexidade disso é assustadora, daí a necessidade de supercomputadores para tratamento dessa massa de informações.
Mas desvendar as normas em si é um problema muito mais viável. Se conseguirmos, não há motivo lógico para não aplicarmos o modelo da mesma forma que a biologia e construir um cérebro "de silício".
Estamos falando das normas que regem os genes, levando a tipos de células disponíveis no cérebro e ao plano subjacente do modo como essas células se distribuem e se conectam. Sabemos que essas normas existem, pois descobrimos algumas enquanto lançávamos as bases para o HBP. Começamos, há quase 20 anos, medindo as características de neurônios individuais. Coletamos enorme quantidade de informações sobre as propriedades geométricas de diferentes tipos neuronais e reconstruímos digitalmente centenas deles em três dimensões. Também gravamos propriedades elétricas dos neurônios usando um método meticuloso denominado patch clamping, que envolve a introdução da ponta de uma pipeta de vidro microscópica na membrana da célula para medir a tensão elétrica dos canais iônicos.
Em 2005 a modelagem de um único neurônio exigiu um computador poderoso e um projeto de doutorado de três anos. Ficou claro que metas mais ambiciosas logo se tornariam viáveis e que poderíamos modelar elementos maiores de circuitos cerebrais, mesmo que nosso conhecimento deles estivesse incompleto. No Instituto da Mente e do Cérebro, no Instituto Federal Suíço de Tecnologia, em Lausanne, lançamos um dos predecessores do HBP, o projeto BIue Brain. Iríamos construir o que chamamos de "modelos unificadores de computador"; que integram todas as informações e hipóteses existentes sobre determinado circuito cerebral, conciliando conflitos nessas informações e destacando qual conhecimento está em falta.
Como um caso experimental, nos propusemos construir um modelo unificador de uma estrutura cerebral denominada coluna corticaI, que equivale a um processador de um laptop. Usando uma metáfora simplista, se você introduzir um pequeno cilindro no córtex e retirar uma porção de tecido de cerca de 0,5 mm de diâmetro e 1,5 mm de altura, isso seria uma coluna. Dentro desse núcleo de tecido você encontraria uma rede muito densa, constituída por algumas dezenas de milhares de células. A coluna é um projeto tão eficiente para um elemento de processamento de informações que assim que a evolução chegou à fórmula, ela continuou replicando esta receita até que não
houvesse mais espaço no crânio, e o córtex teve de se dobrar sobre si para abrir mais espaço - por isso nosso cérebro é enrugado.
A coluna penetra as seis camadas verticais do neocórtex, a camada externa do córtex, e as ligações neurais entre ele e as demais são organizadas de maneira diferente em cada camada. A organização dessas conexões se assemelha ao modo como as chamadas telefônicas são atribuídas a um endereço numérico e encaminhadas por meio de uma troca. A coluna apresenta algumas centenas de tipos de neurônios e, com nosso supercomputador Blue Gene da IBM, integramos todas as informações disponíveis sobre como esses tipos se mesclam em cada camada, até termos uma "receita" para uma coluna em um rato recém-nascido. Também instruímos o computador para permitir que os neurônios virtuais se conectassem em todas as vias dos neurônios reais mas apenas nessas vias. Levamos três anos para criar o software que permitiu construir esse primeiro modelo unificador de uma coluna. Com isso tivemos nossa prova de conceito do que chamamos de biologia de síntese, uma simulação do cérebro com toda a diversidade de conhecimento biológico - e de como ela pode servir como nova solução viável e criativa de pesquisa.
Nesse momento tínhamos um modelo estático - equivalente a uma coluna em um cérebro comatoso. Queríamos saber se ele começaria a se comportar como uma coluna real, ainda que isolado do resto do cérebro em um pedaço de tecido cerebral vivo, então demos uma sacudida nele: um estímulo externo. Em 2008, aplicou-se um pulso elétrico simulado em nossa coluna virtual. Observamos que os neurônios começaram a se comunicar. "Picos": ou potenciais de ação - a linguagem do cérebro -, propagaram-se pela coluna conforme ela começou a trabalhar como num circuito integrado. Os picos fluíram entre as camadas e oscilaram exatamente como fazem em fatias de cérebro vivo - um comportamento não programado no modelo surgiu espontaneamente devido ao modo como o circuito fora construído. O circuito permaneceu ativo mesmo após o fim do estímulo e rapidamente desenvolveu sua própria dinâmica interna, sua maneira de representar a informação.
Desde então integramos aos poucos mais informações geradas pelos laboratórios do mundo todo para esse modelo unificador da coluna O software que desenvolvemos também está em constante aperfeiçoamento, portanto, reconstruímos a coluna todas as semanas, trazendo mais informações, mais normas e exatidão. O próximo passo é a integração de informações para uma região completa do cérebro e depois, um cérebro completo - começando com um cérebro de roedor.
• Reunião de dados
Nossa ação dependerá muito de uma disciplina denominada neuroinformática. Enormes quantidades de informações relacionadas ao cérebro, do mundo todo, devem ser reunidas de forma coerente e, depois, separadas por padrões ou normas que descrevam como o cérebro é organizado. Precisamos captar os processos biológicos que essas normas descrevem em conjuntos de equações matemáticas para desenvolver o software que nos permitirá solucionar as equações em supercomputadores. Necessitamos ainda criar um software que construirá um cérebro que esteja de acordo com a biologia inerente. Nós o chamamos de "construtor de cérebro":
As previsões sobre o funcionamento do cérebro, oferecidas pela neuroinformática e aprimoradas por novas informações, acelerarão a nossa compreensão da função cerebral sem medir todos os aspectos dela. Podemos fazer previsões com base nas normas que descobrimos e testá-Ias em relação à realidade. Um de nossos objetivos atuais é usar o conhecimento sobre os genes que dão origem às proteínas de certos tipos de neurônios para prever a estrutura e o comportamento dessas células. A ligação entre genes e neurônios reais forma o que chamamos de "ponte informática" o tipo de atalho que a biologia de síntese nos oferece.
Outro tipo de ponte informática que os cientistas usam há anos está ligado a mutações genéticas e à relação que têm com doenças: especificamente, como alterações em mutações alteram as proteínas que as células produzem e que, por sua vez, afetam a geometria e características elétricas dos neurônios, das sinapses formadas e da atividade elétrica que emerge no local, em microcircuitos, antes de se espalharem em faixas amplas entre as regiões completas do cérebro.
Em teoria poderíamos programar determinada mutação no modelo e, depois, observar como ela o afeta a cada passo ao longo da cadeia biológica. Se o sintoma resultante, ou um conjunto de sintomas, coincidir com o que vemos na vida real essa cadeia virtual de eventos torna-se candidata a um mecanismo da doença e podemos até mesmo começar a procurar potenciais alvos terapêuticos por meio dela. Esse processo ativo é intensamente interativo. Integramos todas as informações que encontramos e programamos o modelo para obedecer a determinadas normas biológicas. Depois, fazemos uma simulação e comparamos o "resultado"; ou o comportamento resultante de proteínas, células e circuitos, com informações experimentais relevantes. Se elas não correspondem, voltamos e verificamos a exatidão das informações e aprimoramos as normas biológicas. Se coincidem, trazemos mais informações, acrescentamos cada vez mais detalhes, expandindo nosso modelo para uma porção maior do cérebro. Conforme o software melhora, a integração de dados torna-se mais rápida e automática, e o modelo se comporta mais como na biologia real. A modelagem do cérebro todo quando nosso conhecimento sobre as células e sinapses ainda está incompleto já não parece um sonho impossível.
Para alimentar essa ação necessitamos de muitas informações. Preocupações éticas restringem as experiências que os neurocientistas podem realizar no cérebro humano, mas felizmente os cérebros de todos os mamíferos são construídos seguindo normas comuns, com variações peculiares em espécies. Grande parte do que sabemos sobre a genética do cérebro de mamíferos vem de camundongos, enquanto os macacos nos oferecem visões valiosas sobre a cognição. Portanto, podemos começar construindo um modelo unificador de um cérebro de roedor e, depois, usá-lo como modelo de partida para desenvolver nosso modelo de cérebro humano, integrando aos poucos cada detalhe. Assim, os modelos de cérebro de camundongo, rato e de ser humano vão se desenvolver paralelamente.
As informações geradas pelos neurocientistas nos ajudarão a identificar as normas que regem a organização cerebral e a verificar experimentalmente se nossas extrapolações - as preditas cadeias de causalidade - correspondem à verdade biológica. Em relação à cognição, sabemos que bebês muito novos têm alguma compreensão dos conceitos numéricos 1, 2 e 3, mas não de unidades maiores. Quando finalmente pudermos modelar o cérebro de um recém-nascido esse modelo deverá se lembrar tanto do que o bebê consegue fazer quanto do que não consegue.
Muitas das informações de que necessitamos já existem, mas não são de fácil acesso. Um grande desafio para o HBP será distribuí-Ias e organizá-Ias. Vejamos a área médica: essas informações serão imensamente valiosas para nós, não só porque a disfunção nos diz sobre a função n